domingo, 17 de junho de 2012

A ALMA E O FOGO

Trago a alma muda e o coração fraco
Os pés, entreabertos, gemem e congelam
Sem poder, ao atrito, sequer descansar

Tenho os ombros roídos pelo peso do mundo
Mais envergados que o limite para ruir
No entanto, não sucumbem por teimosia

A fé é fraca, rareia; mas não seca
Acabo-me aos poucos só para ver
Até onde vai o terrível gigante que feri

O mundo acabará na manhã de um dia
Mas o tempo não me pertence, nem eu a ele
Somos opostos e não me cabe esperar nem antever

Sangro sumo verde que penetra a terra
E não serve de remédio aos outros
É o tétano que fará o monstro ceder

A insanidade se alimenta de vísceras alheias
Ergue-se mais alto que as cabeças retintas
Mas não fixará seu trono sobre a razão

O cheiro que ferve no subsolo se alastrará
Como combustível fóssil feito de cadáveres
De ossos, de gemidos, de usurpação

Meus pés marcam o caminho, esguio e fatal
Do grande túmulo escuro e hermético
De onde o fogo libertário irá se irromper
Elói Alves
do livro:


Conheça e adquira os livros do autor:
http://realcomarte.blogspot.com.br/p/as-pilulas-do-santo-cristo-adquiri.html


Leia o primeiro capítulo de As pílulas do Santo Cristo romance de Eloi Alves:
http://realcomarte.blogspot.com.br/2012/10/as-pilulas-do-santo-cristo-1-capitulo.html
Abaixo, pode-se ler também o prefácio feito pelo escritor e mestre em Literautra Comparada pela FFLCH-USP prof. Edu Moreira: http://realcomarte.blogspot.com.br/2012/11/prefacio-de-as-pilulas-do-santo-cristo.html

domingo, 10 de junho de 2012

O EU SILENCIOSO

Não sei se quererei um epitáfio
Nada me descreve melhor que o silêncio
O resumo emblemático do não-ser
A ausência de ser concretamente

Falsear a inexistência não sentida
Colorir e perfumar solenemente
Mistificar a negação de uma vida
O despercebido passar pelo caminho

Nada me resume melhor que o não-dizer
Pois é já um resumo de mim mesmo
Fragmento inconsistente de intenções
Incompletude incontida e não sujeito

A essência melindrosa do meu eu
Padece de ser desde a nascença
Em vida não se achou nem foi notada
E vai-se indo quietamente como entrou
Elói Alves
do livro:

sexta-feira, 8 de junho de 2012

ANTE AO RELÓGIO

Sinto-me tão confuso ultimamente
Meus horários nunca batem com os relógios
Cheguei tarde ao ponto dos meus encontros
E minha vida acha-se assim desencontrada

Ando perdendo segundos a cada minuto
E minhas horas todas andam incompletas
Meu bonde está sempre à minha frente
E minhas pernas não podem alcançá-lo

Quem me dera harmonizar-me com os tempos
Atualizar-me ao sabor das circunstâncias
Penetrar profundamente os instantes
Sem que desfaleçam minhas cansadas forças

Elói Alves

terça-feira, 5 de junho de 2012

ANTEAURORA

Os arranha-céus estão sob nossos pés
Voamos nossos vôos pelas longínquas alturas
Noites inteiras e em espaços profundos
E acordamos na antemanhã frienta e sólida

Como são tristes estes meus dias na anteaurora
Custa a nascer o sol que tanto espero
E surge já ao meio dia, fraquejando entre as montanhas

Sempre almejei agarrar as estrelas
Minha infância não se acaba nunca
Acredita eternamente a minha fraca alma
E é mais forte que este meu corpo envelhecido
Elói Alves

sábado, 2 de junho de 2012

ROSTO AO AVESSO

Não estou maquiado como as meninas
Mas ao avesso, rotas marcas pelo rosto
Inteiramente fermentado como o mosto
Recebendo o mundo todo escuro à retina

Joguei as canetas e desfiz todos os pactos
Nem a palavra dou ou a recebo entre pares
Vou pelo mundo como se navegasse mares
Fugindo às paragens, onde há apenas cactos

Ao longe, a flor, toda cercada de espinhos
Aos meus olhos já não dá muitos encantos
Navego introspecto, mas atento_ nem canto

Estou convicto e sem ilusão neste caminho
Sóbrio, impassível, antevendo as intenções
Sigo sem pressa, submetendo as emoções

Elói Alves

quarta-feira, 30 de maio de 2012

VAZIO OPOSTO

A certeza tem-me escapado, vida afora
Ando tonteando e sem sentir-me
Sem saber quais são meus pés
Se ainda os trago ou me acompanham

Ignoro as cores, as decifrações, os outros
Não sei o que dizer, no entanto, digo
Dissimulando sensações sem convencer-me

Não posso afirmar que estou vivo
Nem convicto estou de coisa alguma
Se sei ou se não sei, se alguém sabe
Que afirmar o faço, mas muito incerto
Com a dúvida a consumir-me até os ossos

Nem certo estou de que sou gente
Se de gentil, de gentileza nada exponho
Estou oco e vazio constantemente
Oposto internamente à forma exposta
Elói Alves

terça-feira, 29 de maio de 2012

O PESO DO MUNDO SOBRE OS INDIVÍDUOS: Algumas palavras sobre o "longânimo"

Eu estava a toa quando me veio essa palavra: longânimo. Anoitecia, eu havia saído do trabalho e vagueava como quem descansa a um só tempo o corpo e as ideias. Meio estranha a palavra longânimo. Há tempos que não a ouvia nem de mim mesmo. Não condiz com as palavras que tenho ouvido. Certamente está desatualizada, seja o que for o que queira dizer ser atualizado. Assim, fui indo para outros tempos, retrocedendo. Em pequeno foi que ouvi esta palavra pela primeira vez, recordei-me.
Morei longe de tudo em minha primeira infância. Nem nada havia às vezes. Matos, cabras, gentes dali, bem dali. E uns poucos rapazes já avançados, se atualizando no que diziam moderno, nos bailes, nas roupas, nas bebidas e brigas de bailes, que chamavam de “tretas”. Foi ali que ouvi de uns velhos essa palavra. Eu sabia que não podia ouvir as conversas dos velhos, mas ficava por ali como quem não quer nada. Esticava os ouvidos e ia guardando as palavras. Muita coisa não entrava, outras entravam e saiam, algumas sumiam com o tempo dando-se por mortas, para ressuscitar, toda empoeirada, em um dia longínquo ao findar de uma tarde: “longânimo”.
Certamente alguns velhos me influenciaram bem mais que os jovens modernos que “tretavam” nos bailes naquele tempo. Sendo assim, devo a qualquer velhinho minhas leituras de ainda criança dos provérbios de Salomão. Se não foi este, deve ter sido um outro - Paulo, Pedro, Davi - que me deu o derivado longanimidade. Devo dizer, de passagem, que não havia gibi da Mônica ao alcance de meus olhos. Mesmo num vilarejo do antigo entorno de São Paulo havia uma bíblia. Não havia gibis, nem bibliotecas, mas havia uma bíblia, um Bradesco, um pouquinho mais para o centro, uma assembleia de Deus, a igrejinha católica no alto da praça e terras, muita terra com campos de futebol, onde corríamos descalços, contentes da vida. E havia principalmente todo o tempo infinito e possível para viver aquela vida nos momentos mágicos de sua inocência e daquela liberdade.
A palavra longânimo é antiquada hoje, é desusada e estranha. Sobretudo longanimidade é mais incomum. Essas palavras significam ter um ânimo longo, que não se esgota rapidamente, algo flexível e duradouro. Lembra paciência, que é numa frase conhecida de Cícero a capacidade de suportar, “corpus patiens".
Não é apenas em relação aos outros que não se tem paciência e longanimidade hoje. É também em relação a si próprio, com seus projetos, com suas tarefas; uma ausência de consciência de uma constante auto-mutação. Há sim um comprometimento da relação com os outros, no trabalho, em casa, na escola, na rua, nas redes sociais; mas sua origem está por vezes em si próprio, no elo mínimo do todo. É uma questão de saúde em boa medida, psicológica ou de outras patologias; mais ainda, é já ao mesmo tempo algo mais complexo: uma doença da sociedade atual.
Há forças positivas e negativas em todas as direções no mundo de hoje, o que mostra a complexidade dos fenômenos. E as coisas não são gratuitas, existem interesses poderosos envolvidos. Mas para além de uma dualidade, há também dialética. Como se essas coisas estivessem misturadas no mesmo pote. Assim, como distinguir o bem e o mal?
O mundo de hoje parece pesado demais para os indivíduos. Tanto maior o é quando a sociedade sucumbe toda ela diante de seus problemas. Quando as instituições são mais fortes que os indivíduos e seus interesses tomam rumos opostos. O indivíduo de início fraqueja, depois aceita apenas “empurrar com abarriga”, rejeitando os grandes embates e destratando a si e ao próximo. E torna-se um reflexo dessa sua vida em quase tudo que faz.
Mas quero esperar que haja arte, haja audível música, haja alguma inocência, sobretudo haja indivíduos que se façam distintos, que se façam melhores. Que a paciência, fruto do cuidado de si, da projeção de si para com os outros imediatamente a sua volta ainda se renove. E que o prazer para si não seja o mal para o outro. Que a estranha palavra longânimo traga sua irmã: a longevidade, ainda que estejam fora de moda.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

AS RELAÇÕES ENTRE CAPITAL E TRABALHO NO BRASIL

Epígrafe: "O dinheiro que compra o pão dos pobres comprou antes o divertimento dos abastados" Machado de Assis

A relação capital/trabalho no Brasil não pode ser bem analisada sem um olhar que se dirija às suas contradições históricas, cujas origens vão lá séculos atrás, no período da colonização portuguesa. Neste contexto amplo é que se deu o formato rigoroso de suas relações, excludente e limitador, por um lado, e lucrativo e opressor, de outro.
Primeiramente, ao observar as implicações entre trabalho e lucro na formação de nossas relações, deve-se ter em conta o modelo rígido das condições impostas, com funções definidas como imutáveis que, passando pelo uso do escravo como meio de produção não-remunerável no latifúndio, objetivava, ao fim, apenas o lucro do senhor proprietário do engenho de açúcar e os tributos da Metrópole.
As mudanças no sistema político ocorridas no país, mesmo gerando expectativas, não produziram reformas na estrutura das relações entre capital e trabalho. Isto é, o trabalhador das fábricas, substituindo os escravos, não retiram do que produzem o mínimo para uma alimentação digna e para um básico cuidado do corpo, com o qual “fabricam” o lucro para os ocupantes do lugar dos senhores de engenho, que são, hoje, os empresários.
Desse modo, às mudanças políticas da sociedade brasileira, das recentes às mais remotas, jamais corresponderam quaisquer tipos de reformulação na estrutura das relações de trabalho e destinação do lucro, que continua, portanto, fundada na exploração e exclusão de uns, ou seja, dos trabalhadores (a maioria), e no enriquecimento de outros (a minoria), que são os ocupantes das classes abastadas, que decidem junto ao governo os destinos de todos os demais.
Elói Alves

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