terça-feira, 12 de agosto de 2014

O DESABAFO DE UM VELHO



Riem-se de mim por ser um velho corcunda e que rasteja-se


Talvez devessem se rir da máquina monstruosa e grotesca que assim me fez
Poderiam até chorar se não alcançassem senão o resultado imediato das coisas
A verdade é que estou cansado
Mas como explicarei este meu cansaço
Se nada fiz e já se põe este meu sol?
Não construí pontes nem estradas
Não plantei árvores, não escrevi livros
Não fiz discursos como os políticos e outros oradores
Não galanteei as mulheres
Nem as amei como poetas submissos às musas
Não vi os oceanos como os marinheiros
Nem a ressaca dos mares revoltos invadindo as praias
Não escalei as montanhas como os alpinistas
Nem vi as geleiras como os pinguins
Não tive filhos nem deixarei herança
Não fui órfão nem enviuvei
Não fiz voto de castidade ou de pobreza
Não cruzei as cidades com os pés descalços
Não lutei pelas ideias de liberdade
Pela fraternidade universal
Nem pela igualdade de todos os homens
Não me fiz protestante contra os tiranos
Não lancei pedras contra as vidraças dos opressores
Não blasfemei contra Deus
Nem maldisse o diabo ou lancei pragas contra os infernos
Não padeci as chagas nem as paixões
Não corri o mundo nas procissões
Nem jurei fidelidade a ninguém
Não pestanejei, debruçando-me sobre livros
Não guerreei pela pátria nem lutei por um governo
Não jurei acabar com a fome nem pregar a paz aos fratricidas
Não passei as noites em claro
Não velei ninguém na tenebrosa escuridão
Não me dediquei à caridade
Nem à contemplação do azul do céu
Não firmei os olhos para ver o poente
Nem saí a ver as cores do arco-íris
Não corri as matas perseguindo caças
Não enfrentei os lobos que infestam as cidades
Não jejuei nem comi o pão da dor
Não usei gravatas apertadas
Não embriaguei-me sob a ufania
Não corri às portas dos banqueiros
Nem roguei perdão aos céus e ao bispo
Não me enojei, não esbravejei
Não me indignei
Não transpirei
Não fumei senão essa fumaça intragável
Não torrei meus tostões de noite
Não persegui a noite em longos devaneios
Não devolvi à terra o que dela tirei sem precisão
Não esbravejei inutilmente
Não distingui o cheiro que vem da essência das coisas
.....
Mas estou cansado
Estou extremamente cansado

Estou cansado dos homens
Cansado das vozes dos homens
Estou cansado das obras dos homens
Do ir e vir dos homens
Do que dizem os homens
Do que dizem fazer os homens
Estou cansado da justiça dos homens
Estou cansado da ciência dos homens
Cansado do grito dos homens
Cansado das letras dos homens
Do parlatório dos homens
Estou cansado das virtudes dos homens
Estou cansado da honestidade dos homens
Cansado de seu comércio
Cansado de sua virilidade
Da bondade e das boas intenções dos homens
Da força, do poder dos homens
Da repetição dos homens
Da publicidade dos homens
Cansado das leis dos homens
Da suntuosidade dos homens
Dos templos dos homens
Da pequenez dos homens
Cansado da loucura dos homens
De homens e mais homens
Estou cansado de mim,
Homem
Elói Alves
Sob um céu cinzento

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