sábado, 25 de janeiro de 2014

OLHARES DE ANDARILHOS

(Do livro Contos humanos)

      Um mendigo de São Paulo resolveu adotar uma rua do Ipiranga, onde fica a minha casa, como sua. Há já mais de dois anos que por ali fica. Seja porque os vizinhos são bons para ele ou porque sente-se seguro por ali; o certo é que foi ficando e lá está, mais que muitos moradores, que saem cedo e voltam tarde à casa. Comida, água, e até algum dinheiro para o cigarro, que não lhe falta, e para a cachaça e o café no bar do seu Manoel.
      Mas às vezes o mendigo some. Uma semana inteira. Às vezes mais. Não é a saudade que marca firme a sua ausência, não serei hipócrita nem mais cristão do que sou. É certamente o descanso, o alívio de não ter a campainha sendo apertada a toda hora, a qualquer horário, da noite ou do dia, desconcentrando-me do trabalho, das leituras, das correções, de traduções ou de cuidados do corpo ou da casa, despertando-me mais cedo com o esquivo relógio da rua para ir atender à porta, dizer que ainda não se fez o café.
      Um dia, em uma andança minha, encontrei-o no centro da cidade, próximo à praça da Sé. Não me viu, parece-me. Eu ia às pressas, na outra calçada, pegando-me à Caixa Cultural. Ia ao cartório na rua 15 de Novembro; já entardecendo, próximo às quatro, firmei os passos e segui caminho. Depois, mês adiante, vi-o junto à Praça da República. Cigarro à boca, ar despreocupado, ia observando e seguindo, vagarosamente, um protesto de professores, que enfiava-se pela Barão de Itapetininga indo para os lados do Teatro Municipal. Depois dessa, que foi há mais de ano, já o vi mais vezes, perambulando pelas ruas centrais, desde o Parque Dom Pedro às ruas da Luz ou pela Avenida Ipiranga.
      Somos, pois, dois andarilhos nesta cidade. Ele talvez sem o meu estresse, sem a minha pressa, sem os meus cuidados, sem minhas vigilâncias a cada passo, livre da ditadura dos velhos ponteiros do relógio da estação da Luz, que me pedem para não demorar mais a passada. Eu, sem o seu olhar abstrato e vago, olhando firme e atento a cada instante, esquivando-me da fumaça dos que fumam nas filas com a agilidade dos pés e das mãos, reparando o estado da cidade, sentindo-me feliz e infeliz com o que sinto e vejo a cada canto, à esquerda e à direita, ao chão e nas fachadas dos prédios, fixando os olhos nos muitos números do impostômetro e correndo ao banco para não pagar juros.
       Passantes, caminhantes, corredores, passeadores e andarilhos: São Paulo é uma cidade de movimento, de movimentos intensos. Os ritmos mudam, certamente, mas o movimento não pára.
     São Paulo é uma cidade de atletas. Velocistas que correm contra o tempo que lhes parece quase sempre contrário. Não só paulistanos de nascimento, mas todos que adotam a cidade para nela morar, estudar, trabalhar, negociar ou passear. Há também os paulistanos de passagem que cruzam a cidade ou passam por ela todos os dias dirigindo-se às cidades adjacentes. Também os atletas do Ibirapuera, do Museu Paulista, da USP, das academias que correm em ambientes mais adequados ou apenas caminham para o bem de sua saúde. Mas parece impossível passar pela cidade sem senti-la, absolutamente incólume.
       Há ainda os que correm nos carros ou nas motos, pelas grandes vias, pelas vias menores que servem de acesso àquelas. Pois São Paulo é uma cidade que se conecta, que se entrecruza, integrando pontos longínquos e diminuindo suas distâncias. Marginais, Elevado, avenidas, Radial, alamedas, túneis, viadutos, pontes etc, uma rede complexa de vias que proporcionam seus movimentos na diversidade inconstante de sua velocidade.
     São Paulo é uma cidade em movimento. De alma pujante, de coração pulsante, cujo tamanho, cujo trabalho e cujos desafios são sempre novos e maiores. A demanda é sempre maior, por mais e pelo melhor: mais metrô, melhor transporte. E também a demanda pelo menor como meio de solução: menos trânsito, menos poluição. A pujança e a pulsação desta alma paulistana são típicas e inconfundíveis.
Nossa cidade não é um desafio apenas para quem a administra, até porque essa função deve ser coletiva. O compromisso com o voto e a confiança do povo a que se submete o prefeito, sua preocupação com a boa avaliação não deve ser maior que o compromisso dos moradores da cidade, por ser esta sua casa, lugar onde se desenrola sua vida, seu trabalho, onde põem e repõem suas energias. A consciência de que a qualidade de vida do cidadão passa obrigatoriamente pela qualidade da cidade é busca renovável e contínua para o citadino. Na verdade, a vida da cidade reflete o modo de ser, em todos os seus sentidos, daqueles que a habitam.
      Eu continuo andando. De metrô, de trem, de ônibus, muitas vezes lotados, de carro e a pé. Gosto muito de andar a pé. De andar e ver tudo que há na cidade. Na última Virada Cultural andei boa parte da madrugada. Foi a primeira vez que andei a pé a essas horas. Fui da feirinha de livros da biblioteca Mário de Andrade ao Páteo do Colégio no outro lado do centro velho, que era o espaço da música clássica, parando em vários palcos para ver a arte em sua diversidade. Na era do orkut, do MSN e do facebook, fui reencontrar no Vale do Anhangabau, entre os milhares de espectadores do Stand up comedy, amigos da faculdade que já não via a tempo, sem termos marcado nada. A arte estava em toda parte. E para mim, o vai e vem das pessoas era parte de tudo, era parte da arte, se não já o fosse. A cidade repelia sua suposta existência autônoma, indo exatamente no ritmo das pessoas, no clima de seus habitantes.
       Em abril passado me ocorreu um convite sui generis na Praça Ramos de Azevedo, onde existiu o Mappim. Enquanto cruzava a praça, entrando pela Xavier de Toledo, em direção ao restaurante de um chinês barateiro, onde sempre como, vi um movimento mais ou menos organizado na escadaria do teatro. Um pouco mais de cinquenta pessoas, vestidas com camisetas amarelas, com faixas e cartazes, ouviam um homem que falava através de um microfone sem potência, alguns degraus acima. Era já noite, umas nove horas, e na correria do dia só fui lembrar ali que era o dia do nascimento de Monteiro Lobato, o dezoito de Abril. “Pena”, pensei, “isto me escapara”. Entrei no meio do grupo e ouvi .que falava da literatura infantil, do Sítio do pica pau amarelo e depois das atividades de Lobato na Velha Academia do Largo de São Francisco .e resolvi perguntar para o rapaz do panfleto se era algum professor. Não era! O homem era um guia turístico, liderava um grupo de pessoas que andava pelo centro, visitando lugares famosos e prédios históricos. Dali iriam a biblioteca Monteiro Lobato. Passeio turístico pelo centro de São Paulo? Fiquei pensativo, mas lembrei do restaurante do chinês e rejeitei o convite, prometendo ir ao próximo encontro .
       Não fui ao próximo, nem os vi mais em parte alguma da cidade depois disto. Continuei fazendo minhas andanças quase sempre solitárias e sem planejamento prévio. Ontem mesmo tive que ir à galeria do Conjunto Nacional. Saindo de lá, lembrei-me de que era sábado, e sendo já final de tarde convinha-me dar cordas às pernas. Dei-lhes cordas, e imagina quais foram que quando dei por mim já havia andado metade da Avenida Paulista, passado pelo Masp e ia cruzando a Brigadeiro. Bom, estando ali, agora era esticar até o Centro Cultural São Paulo, que fica na estação Vergueiro. Bem, para hoje não tenho nada programado, mas deixa eu ir à porta, que estão tocando a campainha.

Elói Alves
do livro Contos Humanos

Leia o primeiro capítulo de As pílulas do Santo Cristo
http://realcomarte.blogspot.com.br/2012/10/as-pilulas-do-santo-cristo-1-capitulo.html
Abaixo, pode-se ler também o prefácio feito pelo escritor e mestre em Literautra Comparada pela FFLCH-USP Edu Moreira:
http://realcomarte.blogspot.com.br/2012/11/prefacio-de-as-pilulas-do-santo-cristo.html

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