Entre
meus cinco e doze anos morei em mais de uma dezena de casas. Como não
tínhamos casa própria e éramos muito pobres,
mudávamos sempre que o preço do aluguel ficava mais
alto ou quando meu pai encontrava uma casa com valor mais em conta.
Passado
o tempo, foi-se também de minha memória a maioria das
coisas que me ocorreram por aquela época. Realmente, nada por
aquelas paragens me instigavam vivências nem curiosidades. Mas
houve, em um dos lugares para onde nos mudamos nos meus nove anos,
uma série de acontecimentos extraordinários que nunca
saíram de minha cabeça. Esse lugar, de que sempre me
lembrei a propósito de coisas muito estranhas, era conhecido
como o Beco dos cachorros.
De
fato, eram tantos cachorros que sempre achava haver ali mais
cachorros do que gente. E como era mania ali manterem-se todos a
solta, perambulando pelas ruas ao mesmo tempo, tinha-se a impressão
que a população de cachorros sempre crescia
volumosamente, sobrepondo-se mais e mais à quantidade de
homens, numa versão complexa das progressões
malthusianas entre as papulações dos habitantes daquele
lugar.
Mas
a coisa mais estranha que nunca se desapegou de minha memória
quando penso no que aconteceu naquele lugar é a imagem de João
Vitorino. Era um sujeito estranho e de pouca simpatia, mas tolerável.
De poucas palavras, de voz baixa e riso raro, parecia, apesar de
tudo, incapaz de ofender a qualquer pessoa. João Vitorino era,
ali,- na definição malandra da boca do povo – o
protetor dos cachorros: o São Vitorino.
Às
seis horas da manhã já se via Vitorino pela rua. Ou
melhor, via-se uma porção de cachorros dispostos em
roda, e entre eles o nosso homem, que distribuía pão e
restos de comida ao canil alvoroçado e faminto. A mesma cena
era vista às vezes à tarde ou ao cair da noite. Quando
alguém, para lhe encarecer o trabalho ou mesmo para causar
riso dele, lhe acentuava a enorme quantidade de cachorros que ia
pelas ruas, ele dizia apenas:
-Há
um cachorro para cada homem.
Certa
vez – e não aconteceu outra - houve um grande tumulto. O
caminhão da carrocinha apareceu de surpresa. Um sujeito alto e
magricela, alteando um laço na mão, corria para todos
os lados atrás dos cachorros, que debandavam apavorados. João
vitorino apareceu logo. Abriu o portão de sua casa e
apressou-se a tutelar os bichos, que entravam atropelando-se
estonteados.
Seguido
pelo caminhão, comprido e escuro, o homem do laço foi
bater ao portão de Vitorino. Este pôs-se de
guarda, firme e decidido a qualquer coisa. A confusão
aumentava. O homem do laço fazia grande esforço para
levar a cabo sua tarefa, agora ladeado pelo motorista do caminhão que
lhe viera ao encontro. Os cachorros, com repentina confiança,
latiam todos de dentro do quintal, enraivecidos pela perseguição
de que foram vítimas. O povo, por sua vez, saindo às
pressas das casas, fazia aumentar a algazarra. Todos eram agora por
Vitorino e pelos cachorros. Diante das circunstâncias e da iminência de não se sabe o quê que estaria por vir de pior, o homem
do laço, seguido agora por seu companheiro, correu para o
caminhão – tão apavorado como os cachorros de quem até
há pouco ele era o perseguidor– e ambos desapareceram, sem nunca
mais porem seus pés na vila.
Eis
que um dia os cachorros começam a morrer. Parecia surgir uma
praga mortífera como outrora no Egito antigo. De começo
a morte não surpreendera nem assustava. Morria um por semana.
Vitorino, geralmente acompanhado por alguém simpático à
causa ou mesmo por algum curioso ou desocupado, levava o féretro
até os matos dos terrenos baldios. Cavava o buraco e fazia o
enterro. Embora sob os protestos de muita vozes, ao fim de tudo, ele
fincava uma cruz sobre a terra fofa e retornava sombrio como tinha
ido.
Com
o seguir dos dias, as visitas da morte foram se sucedendo amplamente.
As ocorrências tornavam-se o assunto de maior interesse
popular. No bar, nas rodas de gente nas esquinas, nas conversas das
casas e à mesa de cartas e do dominó. A ideia de que os
acontecimentos seguidos escondiam a presença de uma maldição
ia de boca a boca. Os uivos noturnos ouvidos por muita gente era
certamente, para muitos deles, a certeza de algum agouro, um
presságio do que poderia vir de pior. Algumas pessoas
passaram, diante dos fatos, a defender a necessidade de se expulsar da Vila os cachorros
que ainda restavam, e que já não eram muitos, e assim sossegaria
tudo de uma vez.
O
último cachorro morreu finalmente. Sangrou pela boca como
alguns outros. Morrera numa sexta feira treze de céu nublado..
Muitas pessoas perguntavam se a maldição terminara ou
se estava apenas começando. João Vitorino, agora
sozinho, foi enterrar o último cão exatamente como
fizera ao primeiro. Sem drama, terminou o serviço e voltou
para casa.
No
outro dia cedo a rua estava vazia. Vitorino não aparecera.
Ninguém o vira também pela tarde. No segundo dia, pela
manhã, foram lhe bater à porta. Não havia
tranca. As janelas também estavam abertas. Um menino
adiantou-se e entrou na casa. Tudo estava vazio. Nem João
Vitorino nem coisa alguma importante. Encontraram muita sujeira
espalhada pelos cantos, e também, escondido em sacos dentro de
um caixote velho, muito veneno para matar cachorro.
Elói
Alves
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