sábado, 2 de junho de 2012

ROSTO AO AVESSO

Não estou maquiado como as meninas
Mas ao avesso, rotas marcas pelo rosto
Inteiramente fermentado como o mosto
Recebendo o mundo todo escuro à retina

Joguei as canetas e desfiz todos os pactos
Nem a palavra dou ou a recebo entre pares
Vou pelo mundo como se navegasse mares
Fugindo às paragens, onde há apenas cactos

Ao longe, a flor, toda cercada de espinhos
Aos meus olhos já não dá muitos encantos
Navego introspecto, mas atento_ nem canto

Estou convicto e sem ilusão neste caminho
Sóbrio, impassível, antevendo as intenções
Sigo sem pressa, submetendo as emoções

Elói Alves

quarta-feira, 30 de maio de 2012

VAZIO OPOSTO

A certeza tem-me escapado, vida afora
Ando tonteando e sem sentir-me
Sem saber quais são meus pés
Se ainda os trago ou me acompanham

Ignoro as cores, as decifrações, os outros
Não sei o que dizer, no entanto, digo
Dissimulando sensações sem convencer-me

Não posso afirmar que estou vivo
Nem convicto estou de coisa alguma
Se sei ou se não sei, se alguém sabe
Que afirmar o faço, mas muito incerto
Com a dúvida a consumir-me até os ossos

Nem certo estou de que sou gente
Se de gentil, de gentileza nada exponho
Estou oco e vazio constantemente
Oposto internamente à forma exposta
Elói Alves

terça-feira, 29 de maio de 2012

O PESO DO MUNDO SOBRE OS INDIVÍDUOS: Algumas palavras sobre o "longânimo"

Eu estava a toa quando me veio essa palavra: longânimo. Anoitecia, eu havia saído do trabalho e vagueava como quem descansa a um só tempo o corpo e as ideias. Meio estranha a palavra longânimo. Há tempos que não a ouvia nem de mim mesmo. Não condiz com as palavras que tenho ouvido. Certamente está desatualizada, seja o que for o que queira dizer ser atualizado. Assim, fui indo para outros tempos, retrocedendo. Em pequeno foi que ouvi esta palavra pela primeira vez, recordei-me.
Morei longe de tudo em minha primeira infância. Nem nada havia às vezes. Matos, cabras, gentes dali, bem dali. E uns poucos rapazes já avançados, se atualizando no que diziam moderno, nos bailes, nas roupas, nas bebidas e brigas de bailes, que chamavam de “tretas”. Foi ali que ouvi de uns velhos essa palavra. Eu sabia que não podia ouvir as conversas dos velhos, mas ficava por ali como quem não quer nada. Esticava os ouvidos e ia guardando as palavras. Muita coisa não entrava, outras entravam e saiam, algumas sumiam com o tempo dando-se por mortas, para ressuscitar, toda empoeirada, em um dia longínquo ao findar de uma tarde: “longânimo”.
Certamente alguns velhos me influenciaram bem mais que os jovens modernos que “tretavam” nos bailes naquele tempo. Sendo assim, devo a qualquer velhinho minhas leituras de ainda criança dos provérbios de Salomão. Se não foi este, deve ter sido um outro - Paulo, Pedro, Davi - que me deu o derivado longanimidade. Devo dizer, de passagem, que não havia gibi da Mônica ao alcance de meus olhos. Mesmo num vilarejo do antigo entorno de São Paulo havia uma bíblia. Não havia gibis, nem bibliotecas, mas havia uma bíblia, um Bradesco, um pouquinho mais para o centro, uma assembleia de Deus, a igrejinha católica no alto da praça e terras, muita terra com campos de futebol, onde corríamos descalços, contentes da vida. E havia principalmente todo o tempo infinito e possível para viver aquela vida nos momentos mágicos de sua inocência e daquela liberdade.
A palavra longânimo é antiquada hoje, é desusada e estranha. Sobretudo longanimidade é mais incomum. Essas palavras significam ter um ânimo longo, que não se esgota rapidamente, algo flexível e duradouro. Lembra paciência, que é numa frase conhecida de Cícero a capacidade de suportar, “corpus patiens".
Não é apenas em relação aos outros que não se tem paciência e longanimidade hoje. É também em relação a si próprio, com seus projetos, com suas tarefas; uma ausência de consciência de uma constante auto-mutação. Há sim um comprometimento da relação com os outros, no trabalho, em casa, na escola, na rua, nas redes sociais; mas sua origem está por vezes em si próprio, no elo mínimo do todo. É uma questão de saúde em boa medida, psicológica ou de outras patologias; mais ainda, é já ao mesmo tempo algo mais complexo: uma doença da sociedade atual.
Há forças positivas e negativas em todas as direções no mundo de hoje, o que mostra a complexidade dos fenômenos. E as coisas não são gratuitas, existem interesses poderosos envolvidos. Mas para além de uma dualidade, há também dialética. Como se essas coisas estivessem misturadas no mesmo pote. Assim, como distinguir o bem e o mal?
O mundo de hoje parece pesado demais para os indivíduos. Tanto maior o é quando a sociedade sucumbe toda ela diante de seus problemas. Quando as instituições são mais fortes que os indivíduos e seus interesses tomam rumos opostos. O indivíduo de início fraqueja, depois aceita apenas “empurrar com abarriga”, rejeitando os grandes embates e destratando a si e ao próximo. E torna-se um reflexo dessa sua vida em quase tudo que faz.
Mas quero esperar que haja arte, haja audível música, haja alguma inocência, sobretudo haja indivíduos que se façam distintos, que se façam melhores. Que a paciência, fruto do cuidado de si, da projeção de si para com os outros imediatamente a sua volta ainda se renove. E que o prazer para si não seja o mal para o outro. Que a estranha palavra longânimo traga sua irmã: a longevidade, ainda que estejam fora de moda.

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