domingo, 27 de novembro de 2022

Prefácio do livro 'Olhares silenciosos- PoÉtica da Diferença', de Guga Dorea

 

Elói Alves

O belíssimo livro do poeta Guga Dorea, Olhares silenciosos- PoÉtica da Diferença, que agora se faz chegar às mãos do leitor, é, antes de tudo, um estandarte que se ergue como símbolo de uma sensibilidade poética que sacraliza o olhar humanístico, um olhar que, no dizer do poeta “percorre os múltiplos labirintos” e “difíceis travessias” para ressignificar a condição humana, desnudando-a naquilo que a insensibilidade de nosso tempo petrificou.

O poeta vê como caos originário o vazio; não há aí, ainda, como no Gênises, um fiat lux, a palavra estabilizadora que ordena, que organiza e ilumina; há, via reversa, o medo, ou “os medos”, que, afirma, “podem anteceder aos atos”; ante o vazio, o olhar silencioso observa, enquanto o coração palpita. Essa palpitação, sob um olhar espectador, talvez gélido, dá-se às desconexões “rodeadas pela liquidez da existência desumana”, num perfeito diálogo de sua poesia com a modernidade líquida que se observa na filosofia de Zygmunt Bauman.

O medo, o vazio e o silêncio talvez suponham os “homens egóicos”, expressão que aparece no poema PULSAÇÔES. Aí, objetivamente, surge a ideia de progresso, diante da qual há “vidas perdidas em uma ardente amargura” e a injustiça que se esparrama. Semelhante constatação encontra-se em O MUNDO CHORA, com “Rostos colados em injustiça”. Nesse passo, o poeta enxerga uma “humanização disfarçada” e, “no asfalto nu da realidade” a ameaça aparece como “vírus humano”. As amarguras e injustiças que figuram ali talvez caibam, em exata medida, na cruenta cama de “Procustro”, mito grego cujo ensino o autor retoma, e o faz muito a propósito da formatação de nossa racionalidade quantas vezes insana.

No entanto, mesmo diante da apatia extensa em que mergulham os sentidos, o poeta não restringe seu olhar a um só ângulo, pois o atravessar sereno e vigilante de sua análise exige contrapontos. Assim, aponta para aquele que “Desbloqueia filtros que bloqueiam o enxergar/ Olha e segue perguntando/ São olhos caminhando livre pelo ar”. Esse mesmo tom esperançoso aparece em “inclusão, onde a alteridade permite “olhar as cores e as bordas da multiplicidade” e ainda a ternura em “Receber com abraços sentidos e afetos/percorrer os múltiplos labirintos/jorram belezas e desejos”, e seu planalto poético surge em “alcançar a potência/ e o lirismo das montanhas” e no entusiasmo em que “O riso ressurge”, em O fechar os olhos.

 

Bem sugestivo é harmonia poética que se apresenta nos poemas, o trabalho artístico se constrói em forma livre e versos assimétricos, sem nos privar, todavia, de sua embalante musicalidade, como se dá na construção de Nhanderu ou na cadência de “Vai e vem do ser”, em que a disposição dos versos breves se alia à sonoridade sugestiva de algumas consoantes aliterantes;

A isso se soma a sinestesia, que levemente vai sugerindo sensações simultâneas, as quais se notam, num olhar panorâmico e espaçoso, em “Ver a si mesmo e o outro”, com “fotografar...”/ “com ouvidos aguçados”/”abraços...”/ e “olhares que se bifurcam”, que reaparece em “enigmático olfato/ Da visão...”, no poema Fechar os olhos, além do aspecto antitético de que se pode depreender de “O dentro e o fora”, substantivados pela construção frásica do autor.

Fundamental característica que no presente livro se pode notar é a importância marcadamente humanística a que se têm alçado os poetas e literatos desde as mais longínquas eras como expoentes dos direitos humanos em todas as épocas, evocando a justiça na sua acepção mais profunda e menos institucional ou formal, em labor de resistência e emancipação, que neste livro aparece em seus “gritos de liberdade”.  

Os direitos essenciais inerentes a toda pessoa humana, constituintes do núcleo substancial de sua dignidade, estão amplamente presentes nas obras literárias,  que com frequência retratam a aspiração das personagens a uma vida livre de opressão; tais direitos, sejam conceituados como Direito natural, pertencentes universalmente à condição humana como tal, independentes do legislador, ou como direito positivo, constitucionalizados tardiamente pelos estados ocidentais, são invocados toda vez que o poeta retrata os dramas da existência de um ser sob opressão ou sua impotência ante condições que lhe provocam angústia.

 De fato, agindo contra a corrente, poetas e escritores, desde Homero,  ou ainda antes, erguem seu grito de socorro e alerta, grito tantas vezes sufocado pelo poder dos mais fortes; poder ora encarnado por grupos organizados, institucionalizados ou bandos armados, alheios ou tolerados pela força oficial, ora pelo próprio poder estatal por cuja diminuição os direitos fundamentais lutam diariamente, como garantia da preservação de um mínimo razoável à existência da vida humana, sobretudo em uma época de banalização do mal, como expressou Hannah Arendt.

Para Sartre, o ofício do escritor é desvendar, isto é, iluminar as consciências; já o poeta, no dizer de Drummond, luta com palavras “mal rompe a manhã. Mas o poeta e o escritor não são super-heróis. Dessa “tarefa de tirar vendas, o escritor não pode dar conta apenas com o recurso de suas palavras, com o alcance limitado de sua escrita. Porque ele trabalha sozinho diante de um mundo complexo que se refaz constantemente, que não cessa de produzir engodo, capaz de petrificar as mentes antes de sua chegada” (citação de O olhar de lanceta, p. 39).

O poeta tem a consciência disso, isto é, de que “É difícil viver poeticamente”. Mas afirma em seguida: “a poesia está em nós/ entre o imaginário/ E o real/ Entre corpos navegantes/ Jorrando tempos/ Inalcançáveis”. Por fim, Guga Dorea nos convida a “Olhar além do invisível” e a exercitar a sensibilidade: “São visionários os que sentem/ A interioridade complexa/ Sentir os ares externos/ Que te atravessam o corpo mutante/ Invisibilidades vivas/ Metamorfoses da vida”. Esse convite, para que se agucem os sentidos, iniciando-se já pelo olhar, parece-me o motor maior, a força iluminadora de sua obra.

A todos, ótima leitura.

 

Elói Alves, advogado e professor, formado em Letras pela Universidade de São Paulo-USP e em Direito pela FMU, autor, entre outros, dos livros O olhar de lanceta: ensaios críticos sobre literatura e sociedade, do romance As pílulas do santo Cristo, de Sob um céu cinzento (poesia), Histórias do tio Gerbúlio (pela Ed. Essencial),

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