sexta-feira, 20 de julho de 2012

ESCONDERIJO

Uns olhos sensíveis pedem-me a alma
Mas não estou pronto assim tão rápido
Nem sei em que lugar me protejo agora

Aprendi a ocultar-me muito cedo
Não sei mais viver totalmente exposto
Abrirei-me em um dia de céu límpido

É preciso ser ágil como num piscar de olhos
O imprevisto realmente não avisa
Manterei-me guardado ainda mais um pouco

Elói Alves

quinta-feira, 19 de julho de 2012

JARDINS SUPENSOS

O outro lado está vazio por estes tempos
Caminharei levemente neste estreito

Há uma porta que aponta para o passado
Mas nem tudo ali é visitável

O caminho pede passos curvilíneos
Devo desviar dos destroços e dos corpos

Os jardins suspendem-se pelo espaço
Não trouxe escada para alcançá-los

Como é bom ser alto e alcançar as coisas
Acertaremos na próxima temporada?

Elói Alves

O PÔNEI E A MULA

A infância desfila nos meus sonhos
Colorida e a modos principescos
Cheia de luzes, flores e enfeites
Brincos de ouro, carruagens e cavalos

-Quem vai lá- pergunto ingenuamente?
Sei que não sou eu em meus dias de pequeno
Pois as luzes andavam apagadas
Os cavalos eram mancos e o resto foi roubado

Qual será o menino do futuro
A sentar-se risonhamente nesse pônei
Que empunhe as rédeas com apuro
Terá mesmo pônei ou montará faminta mula?

Elói Alves

quarta-feira, 18 de julho de 2012

PÁSSAROS MUDOS

Meu relógio é um pássaro pequeno
Ele acorda-me às seis horas há algum tempo
Mas não me deixa vê-lo
Quando vou à janela, ele some

O quer este estranho pássaro
Que canta, me acorda e se vai?
Não o alimento, não o vejo nem o mimo

Hoje cedo acordei sozinho, à mesma hora
Fui à janela e o pássaro não estava
Terá achado outra janela para cantar
Ou terá se entediado com o ofício?

Qual o destinos dos pássaros quando não cantam
Seria o mesmo dos homens que perambulam taciturnos?
Elói Alves

CORES

Os homens pintam o espaço com as suas cores
São semelhantes no tom que se espalha
Há uma reunião de cinzas sobre a superfície
Lá e cá, uma cor de pureza e alegria

Há cores que rareiam, extinguindo-se
Mas que mexem comigo lá no íntimo
Hoje não quero chorar

O tempo me engana com sua matiz apática
Seus sinais nunca são claros
Será que vai chover?

Elói Alves

terça-feira, 17 de julho de 2012

CONTROLE

Amanheci diferente e me estranho
Não gosto de mudanças sem aviso
Pega a gente bem despreparado

Posso voltar para ontem à noite
Minha vida andava mais organizada?

Havia umas memórias de mim, antigas
Que estavam postas em sossego
E onde foram parar os meus segredos?

Hoje as coisas andam muito remexidas
Onde está o controle do meu mundo?

Elói Alves

À CURVA

Não sou tão rápido que acompanhe os dias
Às vezes quero dar uma parada
Uma olhada aos passantes apressados e dizer-lhes:
-Boa viagem, mas não passem direto!

Não consigo estar atento todo o tempo
Meus limites não são os mesmos da estrada
Para confessar, nem caibo inteiro neste espaço
Estou sobrando e não é de agora

Andei um tempo na contra-mão
Deu-me umas reações estranhas
A loucura toma outros rumos

Há quanto tempo estamos do fim da estrada
Não haverá outra além desta
Pararemos antes ou no além da curva?

Elói Alves

O MENINO QUE ESCAVAVA A TERRA

       O menino senta-se na calçada e olha em volta procurando algo. Estende a mão, sem erguer-se, e pega um caco de telha escuro. Cava um pequeno buraco e o limpa com os dedos. Depois o remexe, dando lhe uma forma oca, como uma metade de casca de ovo; sempre a tatear com as pontas dos dedos, retocando-o como um pequeno artífice.
      À sua frente, na rua do morro, sobe a polícia vagarosamente. O homem já está lá há muitas horas, sob os jornais que o ocultam. O menino curva-se, chegando o rosto ao buraco e o assopra, com os olhos fechados. Olha-o com contentamento, num êxtase mudo que lhe corre por dentro.
     Arrasta-se, ainda sentado sobre o chão de terra frio. Calcula com os olhos e recomeça o trabalho. Escava com a telha e depois a gira em contorno, como se enlaçasse a lua cheia. Assopra, tete a tete, o pequeno orifício e o dedilha, puxando a frescura da terra pelos pequenos dedos. Assopra agora mais de perto e ergue o tronco sobre as pernas cruzadas. Sossega por instantes na contemplação quieta de sua obra.
      Um enorme carro preto sobe o morro sem pressa.
      -O rabecão chegou- diz um homem a um outro no meio da rua.
      O menino repete o exercício sem descanso, reparando com os dedos a espessura do terceiro buraquinho, sem pressa. No quarto, o pequeno termina a sua obra; mas não descansa. Leva a mão ao bolso e retira duas bolinhas de gude.
      Um carro de polícia passa pela rua. Um outro o segue, mas pára. Os policiais descem e olham as casas.
      A mãe do menino olha do tanque de roupas, procurando no quintal e à frente da casa pela rua, mas não o vê. Fecha a torneira e vem ao portão com o avental escorrendo água e chama o menino em voz alta:
      -Saia do barro, filho e vá brincar lá dentro!
      Ele guarda as bolinhas no bolso da calça e caminha silenciosamente para casa.

Elói Alves

Leia o primeiro capítulo de As pílulas do Santo Cristo romance de Eloi Alves:
http://realcomarte.blogspot.com.br/2012/10/as-pilulas-do-santo-cristo-1-capitulo.html
Abaixo, pode-se ler também o prefácio feito pelo escritor e mestre em Literautra Comparada pela FFLCH-USP prof. Edu Moreira: http://realcomarte.blogspot.com.br/2012/11/prefacio-de-as-pilulas-do-santo-cristo.html

segunda-feira, 16 de julho de 2012

SOMBRAS NOTURNAS

À porta da igreja um homem pede esmola
Outros saem cabisbaixos e sem palavras
A noite está fria e eu ando à toa
Cabisbaixo e mudo como os meus companheiros

Que mania é essa de estar só
De ir e vir inutilmente
De emudecer-se como se as palavras não existissem?

Quando observo o mundo, fico ainda mais triste
Meus óculos não me distanciam do que vejo
O mundo penetra-me por todos os meus poros

Sou apenas mais um vulto na escuridão noturna
As sombras não distinguem os seres
Mas insisto ainda ser alguém

Elói Alves

NOVOS TEMPOS

O dia está cinza e o tempo não melhora
Poderei sair e enfrentar a tempestade?

Já sofri com tempos ruins
Dói-me à cabeça a recordação
Preciso de novos tempos

Não farei lamentos como um profeta desterrado
As lágrimas custam-me muito caro
Aguardo somente um momento para escapar

Elói Alves

domingo, 15 de julho de 2012

NÔMADE

Meus pensamentos erram por lugares que desconheço
Já passou por muitos tempos e vários espaços
Sou um nômade que se desencontra em cada canto
Não há rumo nem estrelas condutoras no infinito
O céu poupa suas luzes

Minhas tendas são frágeis
Estendo-as no meio da noite desértica
Não tenho cuidados ou valores
Meu travesseiro é mais duro que as pedras
Só a geada e os ventos descem e sobem e assobiam

Não há sonhos entre sonos
Um nômade como eu não anseia nem deseja
Meu corpo é uma pequenina parte do deserto
Petrifica-se a todo instante, a qualquer suspeita
Distancia despegando-se de si mesmo

Não deixo rastros
Não sirvo mais de comida aos insetos
No deserto só os bichos guardam sangue
Mas sempre há uma fera que me quer comer
E os perigosos são mais sutis que os bichos mansos

Elói Alves (do livro Sob um céu cinzento)

Leia o primeiro capítulo de As pílulas do Santo Cristo romance de minha autoria cujo lançamento será dia 27/11, no Restaurante Rose Velt, pça Roosevelt, 124:http://realcomarte.blogspot.com.br/2012/10/as-pilulas-do-santo-cristo-1-capitulo.html

Abaixo, pode-se ler também o prefácio feito pelo escritor e doutor em Literautra Comparada pela FFLCH-USP Edu Moreira: http://realcomarte.blogspot.com.br/2012/11/prefacio-de-as-pilulas-do-santo-cristo.html

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