sexta-feira, 12 de julho de 2019

Projeto Como eu escrevo -entrevista- coordenado por José Nunes


Entrevista de Elói Alves para o projeto "Como eu escrevo" https://comoeuescrevo.com/eloi-alves/


Elói Alves é escritor, poeta e ensaísta, autor de “O olhar de lanceta” e “As pílulas do santo Cristo”.


Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo cedo desde menino, isto é certo; o resto vai do tipo de compromisso. Na escola estudava cedo, ou ia trabalhar cedo, por vezes de madrugada, quando fui cobrador de lotação pelos 12 anos de idade; às 6h. já estava em serviço. Daí para frente raras vezes levantei depois das 8h, o próprio curso na USP, no Butantã era pela manhã. Era preciso sair bem cedo, indo da Zona Leste para a Oeste, isto consumia quase 2h, num dia normal; à noite seria pior, nem sempre há ônibus ou se anda vivo pela madrugada na periferia de São Paulo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Com o tempo isso muda, já escrevi muito pelas madrugadas, mas quando são muitos os compromissos, eles nos moldam; assim, escrevo quando sou invocado pelo ofício; já escrevi de pé, na condução, num pedaço de papel, já cravei na mente algumas anotações ou até textos mais amplos e mais elaborados, por falta de outros meios, correndo, logo que pude, a fixar em matéria mais palpável aquilo que parecia valer o esforço. Quanto ao ritual, move-se meu cérebro pela leitura, da Literatura em sua mais diversa diversidade, da ciência; e move-se pela imaginação, quem sabe tantas vezes perdendo-se trilhos de bêbados; pela observação, tão profícuo e mestra e tão inútil como tantos fazeres dos homens.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como não vivo da minha escrita, somente, mas de alheias, inclusive, revisando-as, orientando-as, peço-lhe sempre que segure a ansiedade e espere por mim, que isso de escrita automática descarrilha vagões. Mas há tempo, há dias, há relógios, há editores, leitores, prazeres e ansiedade…s; de modo que há texto que pede para correr; corre-se com ele ou escapa-se, mirra as pernas ou cai no buraco. Assim faz-me o poema, ou termino-o ou quebra-se-lhe a perna; o conto, o romance, como AS PÍLULAS DO SANTO CRISTO, …, não me fazem de diferente modo: ou atendo-lhes a pressa ou entrego-lhes ao coveiro. Doutro modo é o ensaio, como um OLHAR DE LANCETA, que pede espaços, respiros, reflexão; assim o artigo, o texto didático com suas tantas peculiaridades espaçosas e mesquinhas riscas a conduzirem o autor…
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não tenho mania de anotar; gosto do que me lembra o Mestre “convive com teus poemas…”; depois disso, dessa estada, separamo-nos; viro amanuense e os personagens, a história seguem o seu caminho.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
“In the long run  we are all dead”, dizia sir Keynes; não porque a morte esteja à porta e espreita, mas outro motivo, que dá no mesmo: para todos, hoje o folego é curto, de modo que grandes projetos exigem parceiros mais jovens, discípulos amados, dispostos a continuar o trabalho que deixamos. É Keynes e é liberalismo. Meus textos são, em geral, curtos; romance, ensaios, contos, crônicas, poemas, artigos; todos meus livros vão cada um pelas suas cem pp.,; na ficção literária a procrastinação é muitas vezes um mal grave; os personagens, largados a um canto, deformam-se e morrem.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revisar é atividade infindável, mas uma hora dá-se um fim, ou publica-se ou o texto fenece; aliás, há texto que não tem remendo, outros que já nascem querendo ser lido, então dá-se a um leitor, um amigo, um leitor de blog; sempre partilhei e compartilhei leituras, então, no meu caso, sempre houve alguém para ler, o texto contagia muito mais em comunidade, é algo da tradição oral.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Uso os dois, mas ainda uso muito papel, rabiscos, folhas entre livros; neste ponto sou romântico: o rabisco, as marcas, o caminho traçado; a caneta não sumiu, como previam profetas da tecnologia.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Surgem do mundo, dos mundos, do real, da imaginação, do mundo a se fazer, para onde se fugir… do que leio, sonho, detesto, amo, do quero e não quero. A leitura sempre foi um hábito, desde cedo, mas este termo não se lhe encaixa, parece-me; a leitura foi-me companheira, escape, porta, para o real e para o imaginário, que é mais realidade que imaginável.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tenho textos que publiquei depois de anos, escritos pelos vinte anos; muita coisa muda, o modo de composição, humor, a crítica, suas formas, vocabulário, a relação com leitor, a compreensão dos processos, de si, do mundo, do humano. Não gostaria de voltar, não acho que perdi algo nesse sentido, sempre fui exigente com meu fazer; perdi algo da materialidade, mas as ideias, o que importa comunicar, permanece, com suas transformações que sempre energizam.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não estão ao meu alcance, “vasto mundo”!; quanto ao livro, um livro parido da dor e da arte e que tivesse veneno e saúde. Sobre projeto, gostaria de fazer algo que valesse alguma coisa, sem projetar nada, que essa coisa de projetista chama muito a ciência e leva a gente para realidade, no fim, já não se sabe mais onde está a arte.

Postagens populares (letrófilo 2 anos 22/6)