sábado, 4 de outubro de 2014

MÃOS FRIAS E CORAÇÃO QUENTE - 5º cap. de As pílulas do santo Cristo

       Elói Alves
 

        Pedro um dia riu-se com graça de uma senhora, muito idosa, que vinha vê-los na volta das consultas e dos exames médicos. Terminado o encontro, muito contente e emocionada, foi despedir-se deles, mas não achava as palavras que procurava, para as empregar:

       − Muito agradecida, bispo, quer dizer, pastor, perdão, dou...

      − Doutor, completou Teodoro, ajudando-a.
     − Isso, doutores de Nosso Senhor! Muito agradecida, filhinhos! Que Nossa Senhora vos proteja!
       Em uma outra semana, esta mesma senhora, vindo do médico, aproximou-se de Teodoro e pediu uma senha para falar a sós com o doutor Pedro. Ele lhe pediu que fi casse para o fi nal, que as senhas tinham acabado, mas Deus era grande. Silvano, informado por Teodoro, pediu a este que a trouxesse até ele. Com imenso cuidado, Silvano, vendo que estava nervosa, acalmou-a, conversando carinhosamente com ela e pedindo-lhe que ficasse tranqüila, que havia uma senha guardada, porque pressentira que uma necessidade especial surgiria e era certamente o caso dela. A senhora segurou as mãos dele e as beijou chorando.
       − Acalme-se, por favor! O doutor atenderá a senhora! Não há necessidade de choro. Traz as mãos geladas, querida! Mas o coração está quente, tenho certeza − disse-lhe Silvano, procurando tranqüilizá-la.
       A sós com Pedro, ela sentou-se em um banquinho que eles improvisavam e beijou as mãos dele comovida:

       − Meu doutor de Deus!

       − Fale, minha querida!

       − Sabe que tenho muitas feridas aqui dentro.

       − Sim...

       − Muitas, doutor, por Deus!

       − Não jure, não é preciso! Suas palavras são o bastante. Só é preciso que fale.
       A velha senhora pôs-se a chorar sem parar. Pedro pegou uma caixa de lenços de papel, que trazia a propósito e, tirando uma porção deles, pediu que os usasse. Ela quis recusar, mas ele insistiu:

       − Tome, querida! Não precisa mais chorar, hoje estou para escutá-la.
       Pedro vendo que o tempo ia passando e que os outros dois o olhavam de lá à espera, para que lhe enviassem uma outra pessoa que aguardava, fez sinal a Silvano que esperasse.
       − Continue, por favor! Fale para que eu possa ajudá-la.
 
      Ela contou suas desilusões com a medicina e com os homens. Havia sofrido muitos anos com o marido doente. Corrido para todos os lugares, sem remédio, até que Deus o recolheu para si. Depois foi ela quem adoeceu. Não sabia há quanto tempo se tratava com médicos, sem, no entanto, curar-se.
      Tinha freqüentado diversas religiões, nunca obtendo resposta alguma que a socorresse. Contou-lhe que tinha viajado aos Estado unidos e à Europa em busca de saúde e que os remédio de lá, como os de cá, foram tão frágeis como impotentes e que a deixaram apenas mais pobre e ainda mais desiludida, ao ponto de desanimar da vida. Passara-se quase meia hora. Pedro pegou em suas mãos delicadamente e, sentindo-lhe o pulso, disse de modo dócil:

     − Eita, danada, mãos frias e coração quente!

     − Graças a Deus, doutor!

     − Olha bem, querida − retomou Pedro. Não se esqueça, estamos na Europa, guarda bem e com carinho este momento. Amanhã continuamos exatamente daqui. Dá um abraço aqui no doutor.
     Pedro levantou-se devagar e estendeu as mãos para ajudá-la. Ao mesmo instante, fez sinal para que Silvano viesse levá-la.

QUESTÃO DE OUVIDO, 4ª cap. de As pílulas do santo Cristo

      

        
         Às dez horas, terminada a reunião na praça, Teodoro ajuntava os que tinham adquirido senha e os conduzia para frente da catedral, próximo à escadaria. Silvano era aí o mediador. Chamada por Teodoro a pessoa com o número da vez, era conduzida por Silvano até Pedro, onde ficavam a sós. Com o tempo, Silvano foi notando a ansiedade que as pessoas guardavam no meio do caminho. Havia alguns que tremiam as mãos, outros traziam o rosto em satisfação visível, embora alguns, mesmo contentes, não disfarçassem as marcas do sofrimento que lhes impregnara na face. Silvano não dizia nada aí, a não ser alguns monossílabos e preservava o clima que ia se criando naquele pequeno intervalo, como um espaço especial de preparação.
       Logo nos primeiros momentos, Pedro foi percebendo que a maioria das pessoas apenas queriam ser ouvidas. Diante disso, ele se inclinou inteiro à tarefa, ofertando lhes o que elas pediam ou aquilo de que necessitavam. Ouvia-as sempre, olhando-lhes o rosto, com paciência e simpatia, talvez com ternura. Contornava as palavras, completava-as quando o pouco conhecimento ou a emoção das pessoas as interrompia. Ele reanimava a fala, por algum fio que ficara solto entre as palavras, e reconduzia-as para algum ponto de sofrimento e de dor, que as tocasse, garantindo, assim, a fluidez da emoção. 
        Como calculava o tempo para atender os outros, pedia com jeito e leveza que o restante não fosse esquecido, mas que o guardasse com muito carinho na memória, para lhe dizer, sem falta e sem tardar, na manhã seguinte. De fato, não esqueciam o ponto onde tinham parado e os reatavam com vivacidade, interrompendo e continuando sempre, entre alegrias e lágrimas, entre choros e sorrisos francos, sem perder e sem faltar, uma manhã após a outra.
        Algo de afetuoso nascia e crescia nas relações entre eles. Todos os três agora eram singelamente saudados pelas pessoas com gestos, com palavras, com afetos e com presentes. Teodoro, que estava, por sua função, mais próximo do povo, organizando as filas e distribuindo as pílulas, além das senhas, era sempre abraçado e beijado por muitos dos que vinham até ele. Tinham-lhe um carinho especial os idosos, dando e recebendo dele palavras carinhosas e cercando-o, constantemente, de um amor filial. Alguns vinham agora com as crianças, que ele levava carinhosamente ao colo, no fim das reuniões, e com as quais era fotografado, sempre gentil e atencioso, com uma naturalidade franca e risonha.
Leia o capítulo 3ª:  
 
Primeiro capítulo:
 

terça-feira, 30 de setembro de 2014

A CONFIANÇA DO CIDADÃO E OS POLÍTICOS - Pereguntero

 
Alguns indivíduos pedem-me a confiança neles para governarem a terra onde vivo, onde risco e arisco todos os dias essa minha efêmera existência. Mas como posso dar algo de mim tão caro a alguém que se me mostra confuso, chamando mentira de verdade, doença de saúde, bandidagem de honestidade, sujeira de limpidez, miséria de prosperidade? Se seus inimigos, que lhes eram o diabo ontem à noite, almoçam em suas casas mal rompe a manhã e riem-se com eles ao dividirem o que ajuntam sem o suor de Adão? Como posso dar algo que implica a própria história de minha vida se os senhores não tem uma história que me cheire a coisa razoável? Se para conquistar o poder detratam, maldizem, amaldiçoam, perseguem todos que não beijam suas mãos e não se curvam às suas vontades? Como posso confiar assim? Será que entendemos a mesma coisa por 'CONFIANÇA'? Será que vocês têm um tempo para sentarmos e estudar o que realmente significa esse substantivo? Ou será que a confiança que me pedem está na pouca gordura que me resta na parte de trás?
Perguntero

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

O ANTICRISTO NA FILA DO BANCO

      Hoje cedo, na fila de um banco, onde fui pagar uma conta, que só se recebia ali, fui vítima de uma situação inacreditável ou ao menos inverossímil e que me atrevo, todavia, a contar.
    Sendo eu o último de uma fila que contava uns dez, com apenas um caixa, lia, sossegadamente, um livrinho antigo de Petrônio, escrito na Roma decadente, que saquei do bolso. De repente, um sujeito, que me pareceu estranho, beliscou o meu ombro. Olhei e ele indagou:
      -A fila está demorando?
   Respondi com um gesto que podia ser qualquer coisa e ia voltando ao livro quando o homem continuou.
    -Isso aqui ta um caos, para pagarmos temos problemas, se não pagamos temos dobrado. O que não temos nunca é um pouco de respeito.
    Respondi de novo qualquer coisa que parecesse uma amistosa concordância, fitando-o de lado e voltando para o livro, como se tivesse um olho no gato e o outro na carne. Mas o sujeito fez um sinal que achei estranho e me intimou em seguida à exclusividade:
     -Olho no olho!
   Olhei-o, como ele pedia, e comecei a estudá-lo, vagarosamente. Que tipo seria aquele? Seria alguma daquelas curiosas figuras estudadas pelo nosso alienista em sua Casa verde, aquela inacabável habitação onde não entrava o juízo e que parecia tão real e insana quanto este nosso mundo? Mas como, se ainda andava acertando as contas com este mesmo mundo? Antes que eu o sondasse mais a fundo, ele iniciou um discurso embaralhado e espantoso, sempre disputando se me falava mais com os braços ou com a boca.
    -Eu não pertenço ao anticristo. Não tenho pacto com o tinhoso, é o mundo que não me entende. Minha família também não me entende. Se eu fosse o anticristo já tinha arrumado esse mundo, porque ele deve ter muito poder. Começava por essa corja de políticos vadios, obrigava todos a trabalhar, e na risca. Porque o anticristo deve ter poder nos infernos e não deve deixar seus demônios chupando sangue sem fazer nada
     Nessa altura, chegou a minha vez e eu corri ao caixa como quem foge de uma encrenca das grandes, paguei a conta rapidamente e saí do banco sem olhar para trás.
Elói Alves

domingo, 28 de setembro de 2014

POESIA CINZA - ANÁLISE DE SOB UM CÉU CINZENTO, POR PAULA NOGUEIRA

       Abaixo postei a análise do livro Sob um céu cinzento feita pela  professora de literatura brasileira e escritora Paula Nogueira

     A propósito de seus textos, em Sob um céu cinzento: haveria palavras para mensurar a sensibilidade neles? Diante dessa pergunta, serei bem simplória em relação ao que eu não consigo expressar. Adoro a forma como você trabalha o cotidiano urbano, cheio de lirismo, cheio de poesia. Poderia classificar, se me permite, como poesia cinza, poesia de pedra, pois embora sendo plenamente sensível, sua poesia traz o cotidiano pesado a que nos submetemos sem alternativa. O resultado para nós, obviamente, é como essa voz grita: “Perdido, disforme, no contra-fluxo / Sem arranjo possível” (Enigma e angústias).
       Aliás, não poderia deixar de compartilhar o que leio: a poesia nasce em suas palavras, pois já nasceu antes em você, em mim, ao redor, no deixar-se sentir, no que esparge “do sangue que cai da pena da vida” (Onde se faz a poesia). Dói como se fosse física, nascendo como flores delicadas na paisagem feita de cimento, rompendo pele e quebrando pedra vão colorindo com cores que não podemos ver; sua composição nos invade, florescendo no preto e branco aos olhos de dentro e de fora, conforme visita-nos – admito que seu texto foi quem me visitou e não o contrário – a obra composta por 68 poemas que integram esse sentimento urbano impresso. Dói. E é na linguagem ora impregnada de formalismo, sem pedantismo, ora desconsolada informalidade que confirmamos esses aspectos conflitantes que só quem está sob o céu cinzento poderia compreender.
       Há de se considerar que as vozes transeuntes desses poemas, não deixam de nos caracterizar enquanto indivíduos citadinos petrificados nas ruas geladas, confundidos com os espaços. São vozes que guardam a denúncia da nossa metamorfose que ainda não podemos, nem sabemos nomear. Eu lírico é uma denominação limitada e corajosa pra tais vozes, vai além. Afirmo que é a representação de todas as vozes ocas, da periferia ao centro, misturadas murmurando perdidas no tempo e no espaço. É por meio dessa – ou dessas vozes - que respiramos impregnado de uma fumaça densa o lirismo a que nos leva seu texto, acabamos por mergulhar nessa imensa petrificação, sentindo o peso das antíteses que emerge dos conflitos da nossa era.
   Muitos mereceriam, mas necessito destacar aqui Nômade, de uma subjetividade acentuada, mas representante do coletivo abrigado nas tendas frágeis da geada e do vento frio. No tocante ao deslocamento, asseguro que somos todos nômades em nós mesmos. Em A Morte da Vidente, a banalidade da morte, que assombra cotidianamente escondida em cada esquina das perspectivas que carregamos. Enigma e Angústias, Pães e Tempos, Casa de Relógios e Música Monótona – o tempo. Cada indivíduo busca, inventa, aumenta, seleciona, perde-se em função do tempo. Facetas do tempo de correr atrás do tempo que continua nos escapando, perdido neste exato instante e que continuamos a perder. E perdemos para o tempo sob o manto invisível do vazio – Vazio oposto. Não poderia deixar de citar, ainda, Coragem de Menino e o medo de não saber o que é a cidade sem tristeza. Um eu lírico com tal inocência que não conhece outra paisagem, apenas a da cidade com o seu sofrimento. Estas suas pinceladas poéticas estão entre muitas outras belíssimas e únicas integrantes do cenário que você remata com sucesso memorável.
    Para selar, diante da imensidão dessa questão urbana, eu deixo uma pergunta ao leitor mais questionador: Estamos nos transformando em homens feitos de cimento ou o ambiente está tomando a forma que alimentamos dentro de nós? Após Sob um céu cinzento, não consegui ainda respondê-la.
Paula Nogueira
O autor Elói Alves com a professora de literatura  e escritora Paula Nogueira em noite de autógrafo do livro Sob um céu cinzento, em São Paulo


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