segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O VAGABUNDO E OLHAR DE LANCETA

O antitipo da formiga, já na antigüidade, fora evocado para reforçar o ideal rítmico-social premente. No texto bíblico, além da condição sui generis de supremo-valor da inspiração, o texto ganha a condição do observador que extrai da natureza um correlato para aquilo que quer exprimir. A questão sabe-se pedagógica, porém mais corretiva do que profiláctica. É sobretudo moral. Em suma: não se toleram preguiçosos. A sociedade moderna, em condições rígidas de produção e consumo, leva isso tanto ou mais a sério que outras em tempos idos. Há, pode-se dizer, em alguns lugares e em certas épocas, como no Brasil no século XIX, uma maquinização do homem, em função da engrenagem do sistema, primeiramente dos escravos, depois de todos os trabalhadores, como migrantes e imigrantes. Mas haverá sempre, aí mesmo, aqueles que não se encaixam (ou não se deixam encaixar) nessa grande forma social. Temos aqui o vagabundo – o vadio – uma questão, por enquanto, de conceito do campo moral que se lhe impõe; mas que, depois, no auge do regime da CLT, seria uma questão de polícia.
Desde o início, já em Gregório, nossa literatura veio refletindo questões em torno desse assunto. Aparecem, depois, com Memórias de um sargento de milícias e outros, varias obras onde há personagens que se tocam, de leve ou de todo, culminando com Macunaíma, interpretadas muitas vezes como proprietárias do “ethos do povo brasileiro” O tema é , pois, um lugar comum. O que o salva é o tratamento artístico que recebe nos grandes autores na história da literatura brasileira. Talvez mais que isso seja a peculiaridade, a propriedade da natureza dessas personagens nesses autores, a profundidade que escapa ao tipo. Assim é que nos vemos diante de Custódio de “O EMPRÉSTIMO”, de Machado de Assis. Não fosse a profundidade da caracterização deste e de Vaz Nunes, o conto não só escorregaria para indignidade da autoria machadiana, mas, para além disso, reservaria-se a uma anedota, distante da semântica do narrador, desprovida de atributos literários, e a intenção de salvá-lo, se houvesse, levaria-o ao ridículo.
As duas personagens importam mais que o caso do empréstimo – isto, entrementes, ficou dito, mas com franqueza: Custódio e Vaz Nunes são tudo. Um deles está num momento pedinte, a implorar ao outro algum dinheiro com que ir vivendo, “um jantar” ao menos; logo desfaz-se esta condição, fica o general: “na rua, andando, sem almoço sem vintém, parecia levar após si um exército.”
Catilina, general de fato, na urbe romana, insubmisso à ordem estabelecida, como esse, descrito por Salústio “Corpus patiens inediae, algoris, uigilae”(Um corpo capaz de suportar a fome, o frio e o sono). E o que dizer do outro? “Era um dos homens mais perspicazes do século. (...) tinha um olhar de lanceta, cortante e agudo”. Vê-se que o narrador nada economiza, enclina-se ao “honesto tabelião” e vê mesmo, sobre ele, vestígios de sombra de onisciência; nota uma eficácia perscrutadora, admira-a e a exalta: “conhecia a alma de um testador” e “farejava as manhas secretas e os pensamentos mais reservados”. Ora, se um chega a divino, insondável portanto, o outro é enigmático e, logo, foge à simplicidade aparente da história.
Lima Barreto legou nos no início do século passado um conto que dialoga com o de Machado, já falecido. Um conto fantástico sem fantasticidade alguma: fluente, belo e muitíssimo digno. E o que é exatamente? É “o homem que sabia javanês” e chega a cônsul; escreve artigo sobre esse idioma ou sobre Java, vai a congresso internacional de lingüística, como representante oficial do país sem, no entanto, conhecer bem o alfabeto da língua que viera a ensinar; ofício, aliás, o qual lhe conferiu prestígio, dinheiro e, diga-se tudo, renomada inveja. As doutrinações sociais, em seus vários tipos, ingênuas por vezes, intolerantes sempre, não prevêem (e se o fazem não concedem) as diversidades, antes trabalham rigidamente para uma formatação rígida do homem em sua função social. O professor de javanês, que viera vindo de pensão em pensão como Custódio, igual a este, é um exemplo exuberante da limitação e vulnerabilidade do sistema. Poder-se-ia atribuir-lhe o famigerado “jeitinho brasileiro ”.
Conta-se que no Apenino, onde outrora estivera aquele general romano, em meados do século XX, em missão internacional, trabalhavam juntos soldados brasileiros e americanos. Como o frio era intenso, os soldados iam morrendo aos poucos. Percebeu-se logo que morriam mais americanos que brasileiros. Não, não eram estes Catilinas, não! Os americanos, altamente disciplinados e cujos ouvidos, antes de tudo, inclinavam-se à voz do comando, esperavam orientação superior. Os brasileiros, por sua vez, iam se arranjando, antes, com jornais nas botas; e iam vivendo. Eis aí algo claro na brasilidade que a doutrinação condena, mas não pode evitar, ainda bem.
Aristóteles entendia o homem como um animal cívico. E este, para esse filósofo, agindo em coerência com a natureza, devia “bastar-se a si mesmo”. Custódio, o nosso general-pedinte, ia, via reversa, vivendo do alheio, do que lhe davam: “um dez, outro cinco, outro vinte mil-réis, e de tais espórtulas é que ele principalmente tirava o albergue e a comida”. É sabido que, tanto na Cidade-Estado daquele autor clássico como no Rio de Machado, as classes dominantes viviam e gozavam à custa do suor, do sangue e da vida alheios (claro que o escravo não era alheio, como propriedade legalizada ).
Aristóteles justificava a servidão como algo próprio à natureza. O narrador de “O EMPRÉRSTIMO” não vê outra coisa, mas agora a favor do inferior. “Custódio nascera com a vocação da riqueza, sem a vocação do trabalho”. Isso posto, como impingir-lhe um tratamento moral de subvalorização, ou, mais que isso, precipuamente, dada a essência, como submetê-lo ao enquadramento comum de produção e consumo, o qual sustenta e rege esta sociedade e sua civilização como um todo. Aliás, a própria ruptura do esquema de produção fundado na exploração e na posse dos negros, deu-se sabidamente por necessidade de mercados consumidores e de mão-de-obra qualificada, e não por questões humanitárias, ocorrendo, no seu fazer-se, ipso facto, à revelia da Corte.
Como pretenso general, Custódio tem também pretensões a estratégias; embora sua alma romântica e supersticiosa se entregue ao regime do eventual. A própria ida ao cartório de Vaz Nunes dá-se no espaço do adventício. Mas não se pode subestimá-lo. Aos quarenta anos, vai indo e até ostentando, ainda que sem posses e, a gosto de si, à margem do trabalho. Ademais, o embate é que não lhe fora favorável à altura das pretensões de sua alma. Fechadas as outras portas, entra confiante pela do Tabelião. Este, por seu lado, tinha o poder de dominar as situações. O olhar desse homem era de lanceta, como ficou dito, cortante e agudo. Faz lembrar a antiga espada de dois fios, penetrante até a divisão da alma. Custódio nada pôde, a não ser receber a nota de cinco mil-réis, para o jantar, que o perspicaz proprietário lhe dá, assentando assim os ânimos e a poeira. Cinco e cinco, bom para ambos. Olhe que lá vai o general.

Este texto, na forma de ensaio crítico, foi escrito para disciplina de Literatura brasileira IV da FFLCH-USP, 2005, Obtendo nota máxima.

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