sábado, 18 de abril de 2020

JANELAS PARA O SOL DA CIDADE


Inúmeras janelas estão abertas e recepcionam o forte Sol de outono, que ilumina a cidade.  Na pequena rua, apertada entre prédios, como estão os corações citadinos, forma-se uma enorme fila que a solidariedade quentinha alimenta há algumas semanas, vendo apenas a imediata necessidade de saciedade do estômago diante do invisível perigo.

A crônica da cidade é também do cotidiano da aldeia global, unida no enfrentamento comum de algo que ainda não se conhece bem, que é capaz de fazer brotar humanidade em lugares onde havia super-homens, generosidades e criatividade, mas que, ao mesmo tempo, recrudesce cegueiras e preconceitos.

O sol aquece as janelas onde um músico toca docemente uma flauta transversal, num belo fundo musical que se harmoniza com a conversa de vizinhos debruçados sobre o parapeito, melodiando recentes amizades.

- Será que seremos ainda os mesmos? - Pergunto-me, seguindo um ciclista que passa lá embaixo, com a caixa de isopor colada às costas.

A cidade realmente não para, porque não pode, ou porque nem todos têm onde parar. Com esse andar que não cessa, sob esse faustoso sol que ruma inadvertidamente para o regime do inverno, o prefeito decretou que todos que andem, e que tenham realmente que andar, estejam mascarados.

Todavia, como o mandatário não podia mascarar a todos, apenas recomendou o uso do artefato, dando origem a um decreto-recomendação, sensível e peculiar à escassez do fornecimento do produto e à desigualdade de posses da população, que, mesmo parada, move-se e cria e faz, como o sol caminhante, que não para, ainda que se ocultem os seus raios, nos passageiros dias de inverno.


Elói Alves






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