segunda-feira, 19 de maio de 2014

UM CÃO PARA CADA HOMEM - conto

       Entre meus cinco e doze anos morei em mais de uma dezena de casas. Como não tínhamos casa própria e éramos muito pobres, mudávamos sempre que o preço do aluguel ficava mais alto ou quando meu pai encontrava uma casa com valor mais em conta.
      Passado o tempo, foi-se também de minha memória a maioria das coisas que me ocorreram por aquela época. Realmente, nada por aquelas paragens me instigavam vivências nem curiosidades. Mas houve, em um dos lugares para onde nos mudamos nos meus nove anos, uma série de acontecimentos extraordinários que nunca saíram de minha cabeça. Esse lugar, de que sempre me lembrei a propósito de coisas muito estranhas, era conhecido como o Beco dos cachorros.
        De fato, eram tantos cachorros que sempre achava haver ali mais cachorros do que gente. E como era mania ali manterem-se todos a solta, perambulando pelas ruas ao mesmo tempo, tinha-se a impressão que a população de cachorros sempre crescia volumosamente, sobrepondo-se mais e mais à quantidade de homens, numa versão complexa das progressões malthusianas entre as papulações dos habitantes daquele lugar.
        Mas a coisa mais estranha que nunca se desapegou de minha memória quando penso no que aconteceu naquele lugar é a imagem de João Vitorino. Era um sujeito estranho e de pouca simpatia, mas tolerável. De poucas palavras, de voz baixa e riso raro, parecia, apesar de tudo, incapaz de ofender a qualquer pessoa. João Vitorino era, ali,- na definição malandra da boca do povo – o protetor dos cachorros: o São Vitorino.
        Às seis horas da manhã já se via Vitorino pela rua. Ou melhor, via-se uma porção de cachorros dispostos em roda, e entre eles o nosso homem, que distribuía pão e restos de comida ao canil alvoroçado e faminto. A mesma cena era vista às vezes à tarde ou ao cair da noite. Quando alguém, para lhe encarecer o trabalho ou mesmo para causar riso dele, lhe acentuava a enorme quantidade de cachorros que ia pelas ruas, ele dizia apenas:
         -Há um cachorro para cada homem.
        Certa vez – e não aconteceu outra - houve um grande tumulto. O caminhão da carrocinha apareceu de surpresa. Um sujeito alto e magricela, alteando um laço na mão, corria para todos os lados atrás dos cachorros, que debandavam apavorados. João vitorino apareceu logo. Abriu o portão de sua casa e apressou-se a tutelar os bichos, que entravam atropelando-se estonteados.
        Seguido pelo caminhão, comprido e escuro, o homem do laço foi bater ao portão de Vitorino. Este pôs-se de guarda, firme e decidido a qualquer coisa. A confusão aumentava. O homem do laço fazia grande esforço para levar a cabo sua tarefa, agora ladeado pelo motorista do caminhão que lhe viera ao encontro. Os cachorros, com repentina confiança, latiam todos de dentro do quintal, enraivecidos pela perseguição de que foram vítimas. O povo, por sua vez, saindo às pressas das casas, fazia aumentar a algazarra. Todos eram agora por Vitorino e pelos cachorros. Diante das circunstâncias e da iminência de não se sabe o quê que estaria por vir de pior, o homem do laço, seguido agora por seu companheiro, correu para o caminhão – tão apavorado como os cachorros de quem até há pouco ele era o perseguidor– e ambos desapareceram, sem nunca mais porem seus pés na vila.
          Eis que um dia os cachorros começam a morrer. Parecia surgir uma praga mortífera como outrora no Egito antigo. De começo a morte não surpreendera nem assustava. Morria um por semana. Vitorino, geralmente acompanhado por alguém simpático à causa ou mesmo por algum curioso ou desocupado, levava o féretro até os matos dos terrenos baldios. Cavava o buraco e fazia o enterro. Embora sob os protestos de muita vozes, ao fim de tudo, ele fincava uma cruz sobre a terra fofa e retornava sombrio como tinha ido.
         Com o seguir dos dias, as visitas da morte foram se sucedendo amplamente. As ocorrências tornavam-se o assunto de maior interesse popular. No bar, nas rodas de gente nas esquinas, nas conversas das casas e à mesa de cartas e do dominó. A ideia de que os acontecimentos seguidos escondiam a presença de uma maldição ia de boca a boca. Os uivos noturnos ouvidos por muita gente era certamente, para muitos deles, a certeza de algum agouro, um presságio do que poderia vir de pior. Algumas pessoas passaram, diante dos fatos, a defender a necessidade de se expulsar da Vila os cachorros que ainda restavam, e que já não eram muitos, e assim sossegaria tudo de uma vez.
         O último cachorro morreu finalmente. Sangrou pela boca como alguns outros. Morrera numa sexta feira treze de céu nublado.. Muitas pessoas perguntavam se a maldição terminara ou se estava apenas começando. João Vitorino, agora sozinho, foi enterrar o último cão exatamente como fizera ao primeiro. Sem drama, terminou o serviço e voltou para casa.
          No outro dia cedo a rua estava vazia. Vitorino não aparecera. Ninguém o vira também pela tarde. No segundo dia, pela manhã, foram lhe bater à porta. Não havia tranca. As janelas também estavam abertas. Um menino adiantou-se e entrou na casa. Tudo estava vazio. Nem João Vitorino nem coisa alguma importante. Encontraram muita sujeira espalhada pelos cantos, e também, escondido em sacos dentro de um caixote velho, muito veneno para matar cachorro.
Elói Alves
 
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14 comentários:

  1. Belo conto! Condições parecidas vivi, tratando-se das quantidades de casa em que morei; também as poucas lembranças que consegui trazer na memória, Elói! Nem mesmo as chineladas, a pouca , mas sempre para todos os dias, a refeição; Os mais ou menos quatro quilômetros que andávamos a pé para chegar à escola; Nenhum trauma ,rsrssr, no entanto os sonhos, as esperanças SEMPRE presentes. Impossível não ler seus textos e eles não nos remeter à alguma situação atual. Os cães não foram com a carrocinhas, no entanto tiveram o mesmo destino caso tivessem ido. Assim também é com inúmeros humanos, especificamente crianças abandonadas tanto em ruas, quanto em orfanatos; Como os cães no conto, espectadores teve para sentir pena, compaixão, mas a imparcialidade imperou. Se cada cão tivesse um dono daqueles, o fim deles seriam bem diferentes. Quantos aos humanos? Melhor nem falar...destino pior poderiam encontrar.

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    1. Muitíssimo grato, Marilene, por sua preciosa leitura e também por seu comentário. Grande abraço, amiga querida!

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  2. Texto muito bem escrito, mas fiquei triste de ter veneno para cachorro na casa de seu Vitorino...

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    1. POis é, Beth; é curioso e até enigmático muitas coisas no comportamento humano... muito disso é dificil de se explicar; muito grtao por sua leitura. bjos

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  3. ( Ainda a Elisabeth- pelo face) Mas por outro lado, entendo. A desarrumação da casa pode estar relacionada com o fato de Vitorino ter perdido sua própria identidade, sua sensação de humanidade, sendo assim, desapego do ser ´homem´, ele já não precisava de cachorro nenhum...

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  4. (Gisele Régia Alves- pelo face) eu ja tinha suspeitado que ele iria aprontar com os cães; ninguém suspeitava dele pois ele alimentava os cães. mas levando seu texto a nossa realidade, o país passa ser da mesma forma, o politico vem com promessas e diz que vai tudo mudar , ai ele ganha a eleição e dá um beneficio aqui misero e transfere milhões para as contas na suiça e outros paises

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  5. Excelente narrativa, fez-me voltar à saudosa Rua Potá onde vivi e rever meu querido REX um cão vira-lata absolutamente negro de pelo liso , orelhas feridas e cobertas por moscas...mas tão maravilhosamente dócil que isto não nos causava asco! Certa ocasião fomos presenteados com um cão de raça Pastor Alemão Capa Preta que recebeu o nome de Sacha Distel para quem preparávamos uma especial refeição de fubá com costelas bovinas devido sua estrutura. Um dia quando acordamos o encontramos estrebuchando muito.no quintal. Chamamos farmacêutico que diagnosticou a ingestão do veneno estricnina e aconselhou sacrificá-lo pois devido o seu tamanho levaria muito tempo ainda para morrer e seu sofrimento seria prolongado... Fui para minha cama chorar e me recordo bem do barulho daquele tiro de misericórdia!! Teria João Vitorino se mudado pro meu bairro??
    Parabéns Elói suas obras sempre me provocam!

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  6. (Amy Debora Varella, pelo face) Vale cada palavra.
    O texto emociona, castiga as emoções e nos põe diante de um espelho com dimensões extensas, não importa o lado, de alguma forma vc se enxerga e diante disso nos cabe a surpresa nem sempre bem vinda de nossa estranha humanidade

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  7. Vitorino pode ter matado os cães...não sei, o conto não faz este relato, inclusive pode Vitorino e os cães terem sido vítimas de outrem, mas fato é que ele enterrou, supostamente de forma amorosa, cada um deles. Se Vitorino matou os cães, podemos supor vários motivos: foi morar no bairro com esta intenção desde o início; envaidecia-lhe exercer o papel de Deus decidindo sobre a vida e a morte; por amor uma vez que partiria (ele desapareceu?!) e não teria quem cuidasse dos mesmos, matou por medo de perdê-los...só sei que quem recebe o amor incondicional de um cão, tende a retribuir na mesma medida.
    Gostaria de sugerir como leitura complementar o conto "O Cão da Meia-Noite" de Marcos Rey

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  8. Muitíssimo grato, querida Romy por sua leitura preciosa e por seu comentário que tanto aguça; obrigado também pela indicação que vou procurar agora mesmo. Gratíssimo, querida amiga!

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  9. .
    Simone Vieira Alves "Belo texto!!
    Mostra o lado complexo do ser humano!!
    A mão que alimenta, nesse caso, é a mesma que mata!!
    Também acho que podemos fazer um paralelo com o momento político e social atual do Brasil...
    Vide bolsa família !!!
    Parabéns pelo seu trabalho Eloi Alves!!!!"
    (pelo face)

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  10. Retrato de um Brasil dentro de vários brasis, pobres, dificeis, complexos. Me lembrei de um hospital no interior que de uma hora pra outra 2 mil gatos sumiram. Inexplicavelmente. Este cotidiano inexplicável. Das personalidades estranhas deste mundo. Um texto conciso, claro e universal. Amei querido.

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    1. Precioso amigo, ilustre jornais Carlos, muito grato por sua leitura e por seu comentário; fico feliz por sua gentil dedicação aos meus textos, abraços gratos, amigo

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  11. Do jornalista Carloz Torres(Pelo facebook) Elói Retrato de um Brasil dentro de vários brasis, pobres, dificeis, complexos. Me lembrei de um hospital no interior que de uma hora pra outra 2 mil gatos sumiram. Inexplicavelmente. Este cotidiano inexplicável. Das personalidades estranhas deste mundo. Um texto conciso, claro e universal. Amei, querido.

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