sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

O MENINO QUE NÃO CONSEGUIA ATRAVESSAR A AVENIDA

     Genoveva tinha acordado com a pá virada, como ela mesma dizia. Na verdade andava mais amarga do que de costume. Às sete horas pegou o menino que não se animava a passar pela porta e deu lhe um puxão para fora.
      -Vamos, traste, senão você perde a hora da escola!
     A casa ficava a dez minutos da escola, e eles estavam bem dentro do horário; mas a mãe tinha pressa para tocar a vida.
O cachorro como sempre esperou que dobrassem a esquina, com medo de ser enxotado pela dona, e só depois se decidiu a sair às carreiras pela estreita viela. Na calçada da avenida, Genoveva puxou mais firme a mão do menino, para que ele não tardarsse mais o caminho, esperando parado na faixa. O cachorro, que se aproximava, percebeu o carro que vinha já perto e sentou-se a esperar que passasse. Mas o carro parou, com o sinal que fechava, e o cachorro levantou-se agora sem pressa.
      Do outro lado, Genoveva continuava a puxar pela mão do menino, que parecia agora um pano levado ao vento. Nunca se animava a atravessar aquela avenida, e a mãe o vencia empregando o seu jeito. Nos primeiros dias de aula, ele marchava para escola contente; mas desde o dia em que vira aquele acidente não tinha mais ânimo para transpor a travessia, por isso a mãe o fazia seguir à força.
       A rua da escola estava cheia de gente. Alguns carros passavam devagar, levando outros alunos. Uma perua escolar parou antes de vencer a lombada, esperando passar uns meninos que atravessaram na frente. A rua estava toda azul com o uniforme que vestiam os alunos. Naquele friozinho da manhã, a camiseta branca escondia-se sob a blusa fechada com zíper. Algumas crianças traziam cores diferentes na toca, fazendo-se destoar à cabeça. Genoveva aproveitou a passagem deixada pelo carro e foi levar o menino lá dentro. Com o filho entrando, ela estaria livre para o trabalho.
Na tarde desse dia a mãe não apareceu ao portão para buscar o menino. Tinha ligado explicando o problema na fábrica de roupas e que fizessem o favor de deixá-lo na casa da avó, que só a custo saia à rua, por causa das escadas. Tia Maria, que servia a merenda, pegou-lhe pelo braço franzino. Ele sentiu uma leveza meiga naquela mão calejada e deixou-se levar sem dizer palavras.
      A avenida estava a essa hora mais movimentada. Carros circulavam pelas duas mãos e alguns ciclistas iam pedalando pelas suas margens. Na calçada, crianças e adultos fabricavam um burburinho bastante sonoro. Tia Maria andava agora com uns passos frouxos, gozando a liberdade da rua depois do estafante trabalho na apertada cantina, tendo que ouvir ainda tanto grito da criançada. E o menino não dava por nada. Vinha apontando as guias e balbuciando números. Às vezes chegava aos cem, mas logo perdia algum número ou esquecia uma guia. Voltava então ao zero, como se fosse o próximo algarismo. E continuava a contagem sempre.
       De repente percebeu que tinham parado e ele voltou de si com surpresa. Estavam parados na faixa. Era a travessia da avenida. O menino sentiu a mão quente que o segurava. O sinal abriu e algumas pessoas se adiantaram. Tia Maria percebeu que o menino não vinha. Deu ainda o segundo passo e virou para insistir que atravessassem, mas o menino escapou-lhe da mão correndo de volta pela calçada.
      Não havia meios. Nem gritos nem gestos adiantavam. A sua voz rouca e cansada não chegava aos ouvidos do menino. Logo ele tinha sumido de suas vistas, dobrando pelo caminho que ia em direção à escola. Tia Maria fez o caminho de volta. Parou ainda a perguntar se o tinham visto na esquina. O segurança o vira ao portão, correndo de volta à escola. Certamente esquecia alguma coisa. Não era esquecimento de algo. Estava sentado a um canto do pátio, tremendo e chorando. Mas ninguém entendeu nada e menos ainda o menino explicava. Era forçoso esperar pela mãe para levá-lo para casa.
Elói Alves

Leia o primeiro capítulo de As pílulas do Santo Cristo romance de Eloi Alves:
http://realcomarte.blogspot.com.br/2012/10/as-pilulas-do-santo-cristo-1-capitulo.html

Abaixo, pode-se ler também o prefácio feito pelo escritor e mestre em Literautra Comparada pela FFLCH-USP prof. Edu Moreira: http://realcomarte.blogspot.com.br/2012/11/prefacio-de-as-pilulas-do-santo-cristo.html


quarta-feira, 30 de novembro de 2011

AS PRAGAS DA IGREJA E DA CIVILIZAÇÃO

Em nome de Deus e de El Rei, espanhois e portugueses, entre conquistadores e missionários jesuítas, saíram dos mares nas costas do Brasil para submeter os silvícolas à civilização e salvar suas almas do pecado. Esse povo pecador, que andava sem roupa, que vivia no regime da vadiagem, pescando e caçando, nadando e amando-se em redes balançadas pelo vento, recebeu espantado aquele povo “amigo” que subia do mar, como deuses, trazendo presentes em forma de caixinhas, onde podiam se ver, mais nítido que nas profundezas das límpidas águas dos seus rios e dos mares, onde nadavam e navegavam em canoas de tábua.
Eram feios, todavia! Traziam as roupas sujas e a pele manchada pelas doenças dos navios. Contavam que muitos haviam morrido em caminho, sugados pelos escorbutos, e entregues a Deus, primeiramente, e logo às águas fúnebres.
Depois dos banhos e de lavarem-se os vestidos, melhorou-lhes a aparência e tornou-se mais agradável o cheiro. Aos silvícolas, apesar de estranhos nos costumes, não se podia negar-lhes o esplendor da beleza. A altura, a cor, a pele, a agiliddae, a saúde. Mas eram, ainda assim, selvagens cujo maior bem que se lhes podia fazer era-lhes salvar as almas da promiscuidade, mais vil, mais adâmica, mais anticristã.
Depois de uns tempos, a amizade arrefeceu-se. Os índios não eram amigos de dominação. Viviam sua liberdade, sem ajuntar, nem guardar para o amanhã. Não se encaixavam no regime da racionalização colonial, nem da desciplina de uma vida atribulada na terra para ganhar um dia o paraíso. O paraiso era, para eles, a liberdade das matas, onde soava amigo o canto dos pássaros, dos rios transparentes, da bravura e do amor livre.
Muitos deles morreram em combate travado, em disputa desigual, entre a flecha e o canhão, entre o arco e as armas de fogo. No duelo das táticas tribais dos silvícolas e a experiência dos conquistadores, acumuladas em tantas cruzadas e dominações pelo oriente, exterminaram-se aquelas.
Do trabalho racional e organizado da colonização para fragmentação e divisão das tribos houve efeitos vários: Muitos fugiram para o mais fundo interior das matas, que é hoje a Amazônia; outros, desiludidos de sua braveza e orgulho, entregaram se à morte, estendidos em suas redes, do modo que só os indígenas o sabiam fazer; o resto, ocioso e perdido, tornou-se presa fácil, do ardil missionário, do poder dos colonos ou do encanto das novas bugigangas europeias.
Desses, alguns indígenas passaram a servir como remadores pelos rios que conheciam bem, como guias pelas matas onde nasceram e viveram seus pais, ou viraram arqueiros na luta contra franceses, holandeses e contra os Tapuias, índios que jamais aceitaram quaisquer pactos ou tipos de dominação. Outros se integraram nas missões jesuíticas, produzindo bens para a empresa de Deus, comandada pelos padres, cujo trabalho era mediar entre o índio e o colono. Muitas índias serviram como braço e pernas para o cultivo e para o divertimento inigualável dos brancos e para “encher e multiplicar” a nova terra, vindo daí os mamelucos, legítimos brasileiros, do cruzamento das filhas da terra com o europeu invasor.
Mas a tarefa de salvar era mais árdua que a de dominar_ seria mais fácil dominar o bravo e selvagem tapuia, comedor de gentes, que salvar sua alma ou domar sua mente. Os jesuítas reuniram, para isso, os índios dispersos de suas antigas tribos em missões, que eram as reduções. Mas os sacerdotes jesuítas não puderam salvá-los desse mdo: reunidos aos milhares, os indígenas foram vitimados por epidemias causadas por doenças trazidas nos corpos dos europeus, contra as quais o inocente organismo dos índios não possuia imunidade alguma. Morreram mais de suas pragas que dos canhões ou da exploração colonial. Na Bahia do século XVI, “uma só epidemia matou 40 mil índios”, reunidos pelos jesuítas com intuito de salvar suas almas (Darcy Ribeiro, O povo brasileiro, 52).
A autoridade da civilização, porém, representada pela Igreja e pela Coroa, não permitiu aos eurpeus nenhum aprendizado nos contatos com os novos povos. O confronto genocida e etnocida exterminou diversas culturas e várias raças. A igreja só enxergou o pecado, de que era forçoso livrar, e o colono só achou vadios, que era preciso integrar no mundo da produção e do consumo. A beleza, a arte, a sociedade sem classes, a simplicidade e solidariedade, o amor ao seu modo, a liberdade sem extravios, a integração à natureza e a suprema lição da higiene e do banho, nada pode aprender o europeu.
Hoje Espanha e Portugal se diminuem cada vez mais no mundo. Portugal, considerado por outros europeus como um pequeno quintal do já minúsculo continente da Europa, vive terrível crise econômica. Igualmente se afunda a Espanha: longe de uma Alemanha, que lidera largamente, mesmo destruída em duas grandes guerras eurocidas, os espanhois, soberbos outrora, possuem apenas, como seu parceiro ibérico, apenas um passado de histórias e de riquezas mal conduzidas, como também a igreja há muito já não domina, como antes, as condutas e as consciências.

Elói Alves do Nascimento

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