terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

O ENTERRO DE MÃE MARIA


Dona Maria morreu numa tarde em que as flores da primavera se abriam no imenso jardim das terras que ela herdara de seus antepassados e que se transformara na Casa de mãe Maria, alcunha que surgiu um dia numa conversa qualquer, entre seus conhecidos, e que nunca mais saiu da boca do povo circunvizinho.
Filha única, mas rodeada de tias de cujos pais ouviram muitas histórias de senzalas, de engenhos, de Zumbi, ficou viúva antes dos quarenta anos e, não tendo filhos, pôs-se a cuidar dos moleques que viviam soltos nas ruas, tratando-os como se fossem seus. Tinha uma santa mão para curar bicheiras, fazia remédios para feridas que não cicatrizavam e temperava uma cachaça que arrastava gente de longe, pelo gosto e pelo cheiro. Até o Coronel Botelho, em cuja fazenda passara uma noite o presidente, vinha, vez ou outra, beber sentado à mesa dela, todo redondo com a barriga maior que o jumento que o arrastava por aquelas ruas tortuosas, e sempre fazendo muito barulho com suas risadas que imitavam trovões.
Dona Maria gostava da farra, isto é, da boa risada, da casa cheia, de uma boa prosa; na verdade tinha medo e até horror à casa vazia; não tinha o hábito da reflexão solitária e, quando não conversava, tocava a cantar. Gostava das cantigas antigas, das músicas festivas e trocava tudo por uma patuscada, regada à comida farta.
Quando suas tias foram morrendo e ela ficando mais velha, o antigo casarão de seus pais já era frequentado por uma vasta gente dos arredores e por outros que, vindo de longe, passavam ali um tempo a ouvir histórias, a receber rezas, remédios para diversos males e até prestar serviços naquelas terras.
No dia em que havia morte, ela chamava a “Turma do a arrasta-arrasta” e mandava tocar música noite afora; a não ser que fosse morte trágica, como foi a morte do prefeito Totonho, numa emboscada feia, dia em que proibiu a música e apenas mandou distribuir cachaça, dizendo:
- Também não é preciso tristeza.
Sua morte foi um assombro em toda a região de Serras Peraltas. De todos os lados se viam gentes povoando as estradas e se cumprimentando de chapéu na mão.
-Vamos ver mãe Maria!
-Vamos que é uma despedida tremenda!
Um outro, que chegava a cavalo, vendo as flores que desabrochavam ao longe em uma planície extensa, disse, aparelhando-se aos outros no caminho:
-É a primavera dos sonhos, morre o corpo e liberta a alma.
Dona Maria tinha por essa época oitenta e dois anos e uma alegria de menina festeira; amiga da ordem e da paz, mas inimiga de silêncio comprido: “Isso desagua em tristeza”, dizia ela quando ninguém conversava, e depois completava: “tristeza não manda saúde”.
A multidões que chegavam de longe, no entanto, se surpreendiam. Não encontravam ali um velório ou qualquer aspecto que lembrasse a morte. Encontravam uma algazarra única. Uma festa dos diabos que durou três dias, sem contar as noites, que se acabou, não por falta de tempo, mas, porque se acabaram antes a comida e a bebida, que era com que reanimavam a bagunça.
Ao fim de tudo, o delegado veio ver como ficara a coisa. Muita gente ainda dormia esparramado ao quintal, sob o sol já escaldante; uns quase sem roupa, outros enrolados às palhas de milhos, assados ao longo da festança. Por todo lado se viam ossos de animais e penas de galinha, os barris de cachaça estavam deitados, jogados a um canto. Sob as ordens gritadas pelo delegado, começaram a recolher a sujeira; mesmo cambaleando não houve quem desobedecesse a autoridade.
Logo depois chegou o prefeito no seu velho jipe sujo de lama. Deu umas voltas com o delegado e depois mandou lacrar a propriedade. Uma vez que a defunta não tinha herdeiros, tudo aquilo agora passava à propriedade do Estado.
-Que cada um faça o favor de procurar seu rumo! - sentenciou o prefeito.
Elói Alves

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