A
janela que dá para rua é agora a porta para a observação da cidade. Visão
obstruída pelo velho e charmoso prédio oposto a pouco mais de quatro metros. O
rabicho de imagens, que escoam pelos cantos, mostra uma estação de metrô para
cujas escadas ninguém caminha e de onde o eterno brotar de gentes secou.
Na praça do lado oposto uma pessoa anda
vagarosamente sem saber, ou ter, para onde ir, e mais ninguém nos espaços
vazios que se formam de ausências, exceto um cachorro que perambula, arrastando
os ossos que se mostram mais que seus pelos que se rarefazem.
Dos
escorbutos que desanimavam as vidas dos marinheiros nos navios transatlânticos,
onde o tempo custava a anunciar as mazelas, à tísica e a apoplexia, a bíblica
lepra ou hanseníase, as misérias das guerras fratricidas de que líamos em
Hobsbawm silenciaram-nos a nós menos profundamente que os presentes instantes estranhos.
Mas
ainda não se sabe, e talvez nunca saberemos, a medida da dor a sentir, nem o teor
do amargo da água que resta a beber, o gole de cada um, e que se atenua pela
solidariedade dos que se ajudam e da boa medida de razão dos que pensam que não
há opção senão a vida.
Lá
embaixo, a máscara que se arrasta a passos solitários na avenida monótona
invoca a vida; uma mulher que se enverga puxando um carrinho à saída do pequeno
mercado, cuja porta aberta quebra a quietude da cidade recolhida, para e
espirra. No mesmo instante uma janela fecha-se abaixo da minha. Uma moeda em
queda sobre o piso acima tilinta um som sem vida.
Da
janela noto o clarão do sol, que se esconde entre os prédios. O dia está
quente. Dou as costas à rua e volto-me para a mesa onde vejo a capa verde de Fogo morto, e me lembrei do compromisso
com o amigo Caio, com quem estou dividindo a leitura de José Lins, cujo fim
estou postergando faz uns três dias.
-Bem,
é preciso não se entregar e ser firme como Vitorino Papa-rabo- digo comigo, pegando no livro.
Elói Alves
Texto publicado também em https://www.blogdodg.com.br/post.php?id=842
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