sábado, 21 de junho de 2014

O MENINO E A PONTE


O riacho era estreito mas o leito, fundo
As águas corriam ao jorrar de nascentes vizinhas
Sobre ele vergava uma ponte de pau centenário
Que gemia ao vento prometendo cair
 
O menino não ousava transpô-la
Era o único de sua idade que ainda a temia
Atravessara-a muitas vezes ao colo do pai
Mas agora estava grande para isso
 

Numa manhã em que toda a casa ainda dormia
Levantou-se decidido e correu para a ponte
Deu o primeiro passo sem olhar para baixo
Mas estacou com as pernas trêmulas

As águas límpidas corriam alheias àqueles olhos medrosos
Ele apoiou-se com os pés e as mãos sobre a madeira
E moveu-se para frente, agachado
Vagarosamente chegou ao meio
 
Depois levantou-se olhando para frente
Deu alguns passos puxando as pernas pesadas
E logo, misturando coragem e medo
Correu para o outro lado como um furacão
Elói Alves

Primeiro capítulo do romance As pílulas do santo Cristo:




quinta-feira, 19 de junho de 2014

A MORTE DA VIDENTE


Ananias levou um choque no meio da rua

-Deixa eu dizer seu futuro!

Parou estarrecido diante da vidente

Não podia ouvir tal palavra

Tinha medo

Adiante via sempre o dobrar de seu passado trágico

A imagem do avô chaguento aproximava-se dele

Como aparecera no pai no Jequitinhonha de fome

Era também o destino de seu filho no sertão de Minas

Onde não ia há três anos por não ter como

Nem nunca lhe mandava para comida

Fugiu para São Paulo como quem foge do Demônio

Para morar debaixo do Elevado e nos albergues públicos



A mulher pegou-lhe no braço duro e insistiu

-Agora vou revelar seu futuro

Ananias quis fugir mas as pernas não obedeceram

-Seu futuro...

A vidente notou o seu desespero e tomou mais fôlego

-Seu futuro está muito escuro...

-Ananias deu um impulso mas as pernas continuavam paralisadas

Ao mover-se sentiu a ponta do punhal na cintura

-Seu futuro...

A palavra esticava-se ouvido adentro:

Seu futurooo...

 

Ananias sentiu o gelo das pernas que subia pela espinha

A mão foi de súbito à cintura e levou o punhal ao peito da vidente

 

Ambos caíram

 

Ela foi levada ao hospital, onde morreu logo

Ele foi jogado na viatura e acordou preso
 
Elói Alves
 

 
Primeiro capítulo do romance As pílulas do santo Cristo:

 

terça-feira, 17 de junho de 2014

A CONDIÇÃO DE UM MORIBUNDO


Hoje fui ver o vizinho moribundo

Não sei se me notou

Entrei no quarto sozinho

Olhei-o por um tempo

Para ele talvez um tempo inútil

Para mim uma eternidade triste e impotente


Perguntei como se sentia

Não disse nada

Os olhos embranquecidos e aguados

A cabeça imóvel virada para o teto

Pode ser que não se sentisse

E sequer pudesse me ouvir


Aproximei mais e apalpei-o de leve

Apertei-o

Estava duro como cimento envelhecido

A pele gasta e ressequida cobria-lhe os ossos salientes



Depois de uma contemplação extensa

Me virei e sai calado

Era a extensão de minha comunicação com ele


Na saída, que dava para uma viela suja e estreita

Tropecei e pisei o rabo de um vira-lata que fugiu

Na rua uma algazarra febril festejava um jogo

Entrei em casa ainda roendo o meu silêncio frio
 
Elói Alves


Primeiro capítulo do romance As pílulas do santo Cristo:


segunda-feira, 16 de junho de 2014

O ROUBO DO DOUTOR

O doutor foi assaltado no meio da rua

Bateram-lhe a carteira entre os passantes

Houve muita gritaria

-Peguem o ladrão!

Era um pirralho drogado que dormia à porta da Prefeitura

Agarraram-no depressa, mas ele se escapou
 
E pulou do alto do viaduto e espedaçou-se no chão

-Coitado! – disse o dr. -Porque não o deixaram ir?

Elói Alves


Primeiro capítulo do romance As pílulas do santo Cristo:


PANACEIA DE CINZAS


Há uma convulsão nervosa que sobe da terra

As energias gastam-se como fumaça espessa

As emoções assentam-se como pó

Espalham-se ao chão rastros iguais a víboras

A dissipação se incha como epidemia

Os homens no centro da confusão



Uma voz cansada balbucia um “que pena!”

Como elogio fúnebre que não chega à lamentação

E no subsolo gemidos espremidos abortam-se

Dores diluídas na taça da desilusão



Compõe-se ao fim uma panaceia

Como desejo último de emersão

Caldo sulfúreo em que se diluem cinzas

Dos seres que se desmancham no reino da confusão
 
Elói Alves
 
 
Primeiro capítulo do romance As pílulas do santo Cristo:


domingo, 15 de junho de 2014

PASSAGEM

Há algo de etéreo entre o fenecer das flores

No instante vital da beleza que murcha

Que evoca a essência de um explendor que se foi



O ancião já trilhou pela era eufórica

(é próprios das épocas a sucessão de tons)

Calmamente, põe os pés sobre um ocaso sutil

Conhece bem as estações e os tempos

E não se agita com a mutação



À memória alada, alimenta a seiva dos dias que chegam

À indiferença do novo, mantém-se sem tremor

Consciente de que a hora dele também chegará
 
Elói Alves
 

Conheça os livros do autor:

ACÚMULO


Há algo que procuro mas sequer sei o que é

Sinto falta apenas, a todo instante

Volto ao mesmo ponto e deste vou a outros

Num rodar inútil e ébrio de insano



O que será de que tanto tenho falta?

Saio convicto de que agora dará certo

Compro tanta coisa que pareço estar repleto

Confiro, conto e amontôo, mas ainda falta algo



O que será?

Talvez o mundo ainda não esteja completo

É preciso mais e ainda mais um tanto



É preciso correr e amontoar

É preciso trazer e acumular

É preciso ter e reter em abundância



É preciso preencher todos os espaços

Fechar todas as portas e janelas

É preciso fechar-se a si mesmo

Juntamente com tudo que ajuntamos

E morrer sufocado e sem socorro
 
Elói Alves
 

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