segunda-feira, 18 de junho de 2012

BODKI

      (Do livro Contos humanos)
     
      -Está vendo aquela mulher próximo ao posto de saúde?
      -Grávida, no ponto de ônibus?
      -Não, a de chapéu e vestido pretos, que vai mais à frente, do outro lado da rua.
      -Sim. Um pouco estranha, mas parece nova e bonita.
      -Não chega aos trinta anos. É a viúva, a Bodki!
      -Jura? Nunca a havia visto antes. E chama-se assim, Bodka?
      -Bodki. Eu nunca soube o seu nome. O povo a chama de viúva louca...
      -É louca, realmente?
      -Não o afirmo, mas parece. Desde de que o marido morreu, ela tomou modos estranhos.
      -Você já a viu antes?
      -Depois da morte do marido, é essa a terceira vez. Nas outras duas, era tarde da noite, e agora cedo, ainda escuro como vemos. Ela nunca é vista ao claro do dia.
      -Estranha...muito...
      -Sim! Mas não acredite em tudo que soa a seu respeito. Já pela rua correu que ela teve lepra...
      -Hanseníase?
      -Sim. Também que era HIV positivo e que tinha virado cigana. Por último a contagiaram com a gripe suina.
      -Além de louca...
      -Claro! Mas aí não considero folclórico, devido a estranheza que causa a anormalidade do comportamento.
      -E por aí qualquer um pode ser considerado louco.
      -Não questiono. O fato é que a morte do marido mudou-lhe totalmente a vida e, de certo modo, também mudou a vida da vila.
     -Dizem que ele estava no Air France que caiu nas costas do Brasil.
     -Não é verdade. Afogou-se no reveillon de 2009, em Copacabana. A queda do avião ocorreu seis meses depois.
     -E onde gasta a vida, assim, desaparecida?
     -Em casa, certamente, num sobrado da rua do velório municipal. O mercado e a farmácia fazem-lhe entrega em casa, o padeiro deixa lá o pão à porta todos dias.
     -Dizem que ela usa pseudônimo na internet e tem muitos amigos nas redes sociais.
     -Acho difícil, mas não duvido. O que sei é que há algumas comunidades da Viúva Louca na rede, com muitas histórias desencontradas e algumas até assombrosas. Tudo isso me faz imaginá-la uma bodki. Por isso a chamo assim.
    -E o que significa bodki?
    -Era um costume popular indiano relativo à imolação das viúvas que hoje o Estado proibe. Sabe que estive na Índia...
    -Não sabia.
    -Eu era um estudante marxista e fui conhecer a obra de Ghandi. Mas, ao chegar lá, ouvi várias histórias de mulheres que se deitavam na pira funerária, para ser queimadas vivas, juntamente com o corpo do marido morto. Voltei com isso pregado à cabeça e andei acabrunhado, sonhando com elas por várias noites. As mulheres, que se suicidavam, eram chamadas de Sati, que fora uma deusa e era um símbolo de mulher honesta. As que se recusavam ao sacrifício eram chamadas de bodkis, que eram as viúvas malditas, marginalizadas e evitadas em público.
    -Entendo. E a onde vai ela nessas fugas noturnas, errando sozinha pela escuridão dessas ruas?
    -Não imagino, mas essa é a curiosidade geral que anima lendas por aqui e já deu até matéria para cordéis. Olha lá nosso ônibus. Vamos para o ponto!
Elói Alves (do livro Contos humanos)

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Abaixo, pode-se ler também o prefácio feito pelo escritor e mestre em Literautra Comparada pela FFLCH-USP Edu Moreira: http://realcomarte.blogspot.com.br/2012/11/prefacio-de-as-pilulas-do-santo-cristo.html

4 comentários:

  1. Poxa cara e eu achando que tu ia seguir a Bodki e descobrir seus segredos...
    Valeu Eloi,
    Amei
    Elisabeth Lorena Alves

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    1. Oi, Beth, muitíssimo grato, querida! Tenho comigo que segui-la seria uma covardia...ou uma simples molecagem; é uma questão humana, profundamente humana: na arte e na vida, as Bodkis devem seguir seu caminho... talvez apenas com sua dor... abraços gratos!

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  2. Muito rica a narrativa, cercada de detalhes interessantes...
    texto envolvente e perscrutador.
    Tenho comigo que é agora uma dedicada enfermeira de algum ancião, buscando a sua remissão!

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    1. Muito grato, querida Ira! O mundo tem muitas Bodkis (e muitos), ele mesmo as fabrica e as expõe à dor... bjos gratos, amiga

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