(Do livro Contos humanos)
-Está vendo aquela mulher próximo ao posto de saúde?
-Grávida, no ponto de ônibus?
-Não, a de chapéu e vestido pretos, que vai mais à frente, do outro lado da rua.
-Sim. Um pouco estranha, mas parece nova e bonita.
-Não chega aos trinta anos. É a viúva, a Bodki!
-Jura? Nunca a havia visto antes. E chama-se assim, Bodka?
-Bodki. Eu nunca soube o seu nome. O povo a chama de viúva louca...
-É louca, realmente?
-Não o afirmo, mas parece. Desde de que o marido morreu, ela tomou modos estranhos.
-Você já a viu antes?
-Depois da morte do marido, é essa a terceira vez. Nas outras duas, era tarde da noite, e agora cedo, ainda escuro como vemos. Ela nunca é vista ao claro do dia.
-Estranha...muito...
-Sim! Mas não acredite em tudo que soa a seu respeito. Já pela rua correu que ela teve lepra...
-Hanseníase?
-Sim. Também que era HIV positivo e que tinha virado cigana. Por último a contagiaram com a gripe suina.
-Além de louca...
-Claro! Mas aí não considero folclórico, devido a estranheza que causa a anormalidade do comportamento.
-E por aí qualquer um pode ser considerado louco.
-Não questiono. O fato é que a morte do marido mudou-lhe totalmente a vida e, de certo modo, também mudou a vida da vila.
-Dizem que ele estava no Air France que caiu nas costas do Brasil.
-Não é verdade. Afogou-se no reveillon de 2009, em Copacabana. A queda do avião ocorreu seis meses depois.
-E onde gasta a vida, assim, desaparecida?
-Em casa, certamente, num sobrado da rua do velório municipal. O mercado e a farmácia fazem-lhe entrega em casa, o padeiro deixa lá o pão à porta todos dias.
-Dizem que ela usa pseudônimo na internet e tem muitos amigos nas redes sociais.
-Acho difícil, mas não duvido. O que sei é que há algumas comunidades da Viúva Louca na rede, com muitas histórias desencontradas e algumas até assombrosas. Tudo isso me faz imaginá-la uma bodki. Por isso a chamo assim.
-E o que significa bodki?
-Era um costume popular indiano relativo à imolação das viúvas que hoje o Estado proibe. Sabe que estive na Índia...
-Não sabia.
-Eu era um estudante marxista e fui conhecer a obra de Ghandi. Mas, ao chegar lá, ouvi várias histórias de mulheres que se deitavam na pira funerária, para ser queimadas vivas, juntamente com o corpo do marido morto. Voltei com isso pregado à cabeça e andei acabrunhado, sonhando com elas por várias noites. As mulheres, que se suicidavam, eram chamadas de Sati, que fora uma deusa e era um símbolo de mulher honesta. As que se recusavam ao sacrifício eram chamadas de bodkis, que eram as viúvas malditas, marginalizadas e evitadas em público.
-Entendo. E a onde vai ela nessas fugas noturnas, errando sozinha pela escuridão dessas ruas?
-Não imagino, mas essa é a curiosidade geral que anima lendas por aqui e já deu até matéria para cordéis. Olha lá nosso ônibus. Vamos para o ponto!
Elói Alves (do livro Contos humanos)
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capítulo de As pílulas
do Santo Cristo, romance de minha autoria:http://realcomarte.blogspot.com.br/2012/10/as-pilulas-do-santo-cristo-1-capitulo.html
Abaixo, pode-se ler também o prefácio feito pelo
escritor e mestre em Literautra Comparada pela FFLCH-USP Edu Moreira: http://realcomarte.blogspot.com.br/2012/11/prefacio-de-as-pilulas-do-santo-cristo.html
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Poxa cara e eu achando que tu ia seguir a Bodki e descobrir seus segredos...
ResponderExcluirValeu Eloi,
Amei
Elisabeth Lorena Alves
Oi, Beth, muitíssimo grato, querida! Tenho comigo que segui-la seria uma covardia...ou uma simples molecagem; é uma questão humana, profundamente humana: na arte e na vida, as Bodkis devem seguir seu caminho... talvez apenas com sua dor... abraços gratos!
ExcluirMuito rica a narrativa, cercada de detalhes interessantes...
ResponderExcluirtexto envolvente e perscrutador.
Tenho comigo que é agora uma dedicada enfermeira de algum ancião, buscando a sua remissão!
Muito grato, querida Ira! O mundo tem muitas Bodkis (e muitos), ele mesmo as fabrica e as expõe à dor... bjos gratos, amiga
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