terça-feira, 6 de maio de 2014

O MAGNÍFICO ENTERRO DE PELEZINHO

        Falo de uma notícia velha. Há alguns meses, faz quase um ano, os jornais deram a notícia acima, não exatamente com estas palavras do título. Falavam, cada qual com seu enfoque, do atropelamento e do enterro de um menino que limpava vidros de carros no centro da cidade, perto de onde trabalho.
        Estava por ali já algum tempo, eu mesmo o vira algumas vezes. Tinha menos dez anos, baixo, sempre descalço e com calção e camiseta muito sujos. Quando os carros paravam, com o sinal que se fechava, levantava-se da guia e oferecia seu trabalho.
       -Posso limpar, moço?
        “Sim” e “Não”, “sim” e “NÃO!!!” e “não” e “NÃO!”, ia, assim, guardando suas moedas.
         Mas um dia, depois de um “sim” ou de um “não”, não sei bem, entre os carros, veio, muito rapidamente, uma moto, que, jogando-o ao chão, fê-lo bater com a cabeça e morrer ali mesmo.
         O agente de tráfego isolou o corpo e colou uma faixa, liberando a outra pista; mas os outros meninos iniciaram logo o barulho. Fecharam a outra pista com sacos de lixo e colocaram fogo em pneus. A polícia não demorou a aparecer, chamaram também a tropa de choque; mas antes de que houvesse bombas, balas de borracha e cassetetes, veio a imprensa que seguia a comitiva do governador, em campanha à reeleição.
         Depois da imprensa e dos correligionários, com bandeiras do partido e camisas com a foto do candidato estampada, apareceu o próprio governador, que, informado do caso, mandou que levassem o menino em um helicóptero. Mas como os policiais o informaram que já estava morto, encarregou a seus assessores que cuidassem junto à família da liberação do corpo e que fizessem o enterro com toda a dignidade possível.
        Ainda no local, questionado sobre a péssima condição social em que vivia o menino, o governador afirmou ser inaceitável deixar que esses meninos vivam pelas ruas, longe da escola, sem o mínimo para que vivam com dignidade, que é  o básico que o Estado deve prover, e que ele mesmo tomaria sobre seus ombros essa responsabilidade, elaborando, com todos os seus esforços, em seu novo mandato, se Deus o quiser o povo assim o escolher, um grande projeto de inclusão social que tiraria de vez todo esses meninos da rua.
        -Um projeto de carência zero!- concluiu o político.
 
         O enterro foi concorrido. Houve muitas flores, um caixão bonito e coroas enviadas por deputados candidatos também a novos mandatos. Chegaram também flores enviadas por dois candidatos que concorriam com o governador. Além das autoridades políticas, a imprensa entrevistou também os religiosos presentes que acordaram um culto ecumênico pela triste passagem do garoto
                                                           
                                                 ***
         Passado o tempo, não se falou mais no caso, e eu mesmo não me lembrava dele. Por um acaso, hoje cedo, veio-me tudo à lembrança. Pela hora do almoço, tendo que ir ao interior do Estado às pressas, resolvi comer apenas um lanche e nem mesmo quis me sentar. À porta do bar, enquanto meu lanche cozia na chapa, virei para a calçada e notei um garoto que riscava a calçada com um pedaço de rodo, como se se desenhasse algo no chão. Pareceu-me muito conhecido, mas minha memória não o ligava a nada. Ao seu lado tinha um pequeno balde. Ele notou que eu o examinava e abaixou mais a cabeça.
         -Não aceita um lanche, menino? E fiz sinal para que viesse.
        Veio logo, mas andando vagarosamente, com os pés nus sobre o chão de concreto.
         Dei a ele o lanche que o chapeiro me entregava e pedi que me fizesse outro. Quando o menino ergueu a cabeça, tudo me ficou repentinamente muito claro.
         -Você não conheceu um menino que vivia aqui pela rua? - arrisquei, mas ele não respondeu nada.
         -Que limpava os carros e que morreu, o pelezinho?
        O menino afastou-se de mim, com a cabeça baixa e disse já um pouco de longe e sem se voltar:
        -Era meu irmão.
 
Elói Alves

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10 comentários:

  1. (de Iraci Ciritelli, pelo face) "Nada mudou!! nem mesmo a atividade do irmão do Pelezinho!! Pelo trágico desfecho, ao invés de coroa de flores, houvessem intercedido nesta família dando-lhes o devido suporte e a história não se repetiria! Temos sido tão bombardeados por barbáries, aberrações e tragédias que, não se culpe amigo, por temporariamente ter se esquecido do menino, haja memória! Hoje cedo, mas um caso "em Ubatuba" de pai que mata a filhinha de 3 aninhos...Quantos são mesmo nesta semana os casos de filicídios??? Tão realista o texto que pude ver a feição do Pelezinho e a de seu irmão! seu encardido calção, suas canelas esbranquiçadas pela ausência de hidratação! ai ai..."

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  2. Ia dizer o mesmo que a Iraci!
    RT "Nada mudou!! nem mesmo a atividade do irmão do Pelezinho.
    De fato, no momento que a mídia focava tudo eram belas promessas, agora sem os reflexos dos holofotes, tudo voltou ao normal...
    #Triste!

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    1. Muito grato, Beth, por sua leitura e por seu comentário.

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  3. (Leonice Rocha, pelo face) "Parabens pela sua atitude Elói,que triste tudo isso,visto que a atitude politica na situação nada mais foi pra angariar votos,é isso o que vemos todos os dias na palhaçada das campanhas politicas,fazem isso,aquilo,a situação é essa ,aquela quando na realidade é só lábia pra enganar e,ou ate aproveitar da situação pra leva-los eleitos ,tirando a tristeza do ocorrido do mais é insuportável ver essas crianças na ruas ,de que adiantou fazer um enterro tão bonito e a dignidade da familia,onde está? Visto que o irmão continua na mesma situação,penso que esses governantes e toda a corja deveriam se envergonharem diante de tais fatos. Abração e obrigada por compartilhar Eloi sempre bem vindo seus textos."

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  4. Belo texto Eloi...o final nos engasga pois nos coloca frente à "tragédia" dessas crianças e ao "espetáculo" da política. Tragédia porque nos fala de um destino que parece bem traçado e previsível, onde tudo só se repete em direção a um fim cruel. Espetáculo porque é nisso que a tragédia se transforma quando apropriada pelo mundo da política, ganhando a possibilidade e esperança de uma "salvação" quando, na realidade, é só um espetáculo, efêmero, sem maiores resultados!

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    1. Muito grato, Henrique por sua preciosa leitura e por seu comentário. Abraço, amigo!

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  5. boa memória,Elói! Imagem semelhante que o remeteu àquela cômica,se não fosse tão triste.Quisera o povo ter uma memória assim; pensaria bastante antes de confiar o voto a um crápula professor de falsas e enganosas promessas em época de eleições.Adorável texto,Elói! Abraços!

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  6. E segue o descaso, a violência, a tragédia! E estamos cada vez mais bem servidos de canalhas e cafajestes no poder e uma Sociedade "umbigo"

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    1. Triste verdade, amiga Ira; grato por compartilhar sua análise; beijos gratos.

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