O menino senta-se na calçada e olha em volta procurando algo. Estende a mão, sem erguer-se, e pega um caco de telha escuro. Cava um pequeno buraco e o limpa com os dedos. Depois o remexe, dando lhe uma forma oca, como uma metade de casca de ovo; sempre a tatear com as pontas dos dedos, retocando-o como um pequeno artífice.
À sua frente, na rua do morro, sobe a polícia vagarosamente. O homem já está lá há muitas horas, sob os jornais que o ocultam. O menino curva-se, chegando o rosto ao buraco e o assopra, com os olhos fechados. Olha-o com contentamento, num êxtase mudo que lhe corre por dentro.
Arrasta-se, ainda sentado sobre o chão de terra frio. Calcula com os olhos e recomeça o trabalho. Escava com a telha e depois a gira em contorno, como se enlaçasse a lua cheia. Assopra, tete a tete, o pequeno orifício e o dedilha, puxando a frescura da terra pelos pequenos dedos. Assopra agora mais de perto e ergue o tronco sobre as pernas cruzadas. Sossega por instantes na contemplação quieta de sua obra.
Um enorme carro preto sobe o morro sem pressa.
-O rabecão chegou- diz um homem a um outro no meio da rua.
O menino repete o exercício sem descanso, reparando com os dedos a espessura do terceiro buraquinho, sem pressa. No quarto, o pequeno termina a sua obra; mas não descansa. Leva a mão ao bolso e retira duas bolinhas de gude.
Um carro de polícia passa pela rua. Um outro o segue, mas pára. Os policiais descem e olham as casas.
A mãe do menino olha do tanque de roupas, procurando no quintal e à frente da casa pela rua, mas não o vê. Fecha a torneira e vem ao portão com o avental escorrendo água e chama o menino em voz alta:
-Saia do barro, filho e vá brincar lá dentro!
Ele guarda as bolinhas no bolso da calça e caminha silenciosamente para casa.
Elói Alves
Leia o primeiro
capítulo de As pílulas
do Santo Cristo romance de Eloi
Alves:
Abaixo,
pode-se ler também o prefácio feito pelo escritor e mestre em Literautra
Comparada pela FFLCH-USP prof. Edu Moreira: http://realcomarte.blogspot.com.br/2012/11/prefacio-de-as-pilulas-do-santo-cristo.html
Que cena doce de natureza e menino, brutalmente interrompida pela triste realidade... A rua que pertence ao menino, agora tomada pela viatura!
ResponderExcluirEssa mãe, eu vi, e como ela também apreendi, na proteção ao menino. Agradeço o suave desfecho!
Disse e repito, sua capacidade de narrar e nos envolver com detalhes é fantástica! Parabéns Eloi.
Muito grato, cara Ira, por sua apreciação gentil, querida amiga! Abraços gratos!
ExcluirPoxa Eloi, sofri em silêncio com o menino.
ResponderExcluirSó quem conhece a brincadeira solitária e tosca, sem muitos artifícios, sabe o que o pequenino sentiu ao caminha calado, com suas preciosas bolinhas de gude, de volta a segurança do lar.
Doeu-me a alma...
Elisabeth Lorena Alves
Oi, Beth, muito grato por sua leitura e pelas palavras singelas. Delicadas questões...beijos gratos, querida!
ExcluirDe Marilene Ribeiro: "Posso ver tranquilidade e paz nos gestos da mãe! Elas independem, às vezes ,de circunstâncias. Gostei do desfecho!Quando esperava que fosse chamar o filho preocupada com as viaturas, falou da saída do menino do barro! Lindo, amigo!" pelo facebook
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