quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

DEUS E O DIABO NO IMPÉRIO DO SILÊNCIO

          Outro dia, depois de assistir a um jogo nos Jardins suspensos de Parque Antártica, fomos eu e um amigo comer em uma lanchonete da Pompéia. Comemos pouco, bebemos muito. Já tarde fomos para sua casa, dormir um pouco, na Marechal, próximo ao elevado. Mal encostei no sofá, entrei em sono profundo. Logo Deus veio ter comigo, ou fui eu que lá andei a encontrá-lo. Estava com as barbas crescidas, brancas, forte e envergando o tronco. Estava pacifico como um deus sem testamento, nem antigo nem moderno, sem a quem deixar como herdeiro seu. Repousou-se os olhos num Jardim e encostou seu cajado, que, na falta de ovelhas, usava para se sustentar os passos curtos. Parou frente a umas flores e sorriu sereno para um beijaflor, que lhe pousou no cajado suavemente e logo foi-se embora beijar flores. Sentou-se numa pedra lentamente e tirou um livro do jaquetão; era o Cândido, de Voltaire.
         Eu ia sentar-me com ele, quando tropecei nas próprias pernas. Fui levantando aos poucos, tentando me achar, às apalpadelas, até que encontrei o interruptor na parede. Calcei os chinelos e fui esvaziar a bexiga. Voltei do banheiro sonolento, escorando-me como cegobêbado.
Dormi.
Um som forte de música incompreensível derrepente me perturbava, um vento forte encheu toda a casa. Uns gemidos se misturaram ao vento e ao barulho em forma de música. Era o diabo! Reconheci-o pelas orelhas que se metamorfeseavam em chifres sujos e enormes, que nasciam do início do pescoço, indo para trás como chifres de cabra. Não era tudo. Arrepiei-me mais pelas formas do nariz, pontudo como um nabocanivete com três buracos na ponta, que esticava-se e diminuia seu tamanho conforme respirava. Estava acompanhado pela diaba, muito redonda e baixa, a cabeça e os pés sumiam-se e só lhe aparecia a voz arrepiante, gritando provérbios de repreensão moral religiosa. O diabo era austero e rígido, todo de preto, num manto litúrgico.
       Era o virar da tarde, quando ele com uma grande borracha nas mãos, auxiliado pela diaba que pisava o pescoço dum diabinho, pequeno e orelhudo como o pai, ministrava uma seção com toda sua capacidade e poder. O diabinho teve a camisa rasgada pela borracha, que lhe bateu firme nas costas. A mulher agora esticava mais as estrofes dos provérbios, como se fosse mudar de adágio para música, mas terminava em gritos finos e longos, como um sapo eufórico num coral de brejo.
           De repente, a borracha partiu-se e foi ferir a diaba com uma ponta de arame, cortando-a na testa. Ela, num instante em que eu abri e fechei os olhos, tinha voado ao pescoço do diabo, como que para lhe chupar seu sangue.
          -Tecaia, gritou o diabo.
          Neste pequeno espaço de tempo, o pequeno escapou, com um pulo, sumindo-se na escuridão. Eu, querendo segui-lo, dei um giro de cento e oitenta graus como um raio que some do oriente e aparece no ocidente num instante, num átimo, e dei uma trombada num poste onde o diabo pendurava sua borracha.
         A dor foi me despertando. Logo me peguei virando-me no sofá incomodado. Briguei ainda com o travesseiro, me virando sobre ele e me revirando sem chegar a consenso. Era o estômago reclamando certamente meus hábitos alimentares. Fui de novo ao banheiro, depois à janela. Estava uma madrugada fria. Fiquei ali olhando a noite. Um vazio penetrou em mim com o frio, com o frio veio uma sensação de tristeza. Lá embaixo na rua o silêncio era também triste, a metrópole do barulho sob o império do silêncio. Meu vazio aumentava mais com aquela temperatura baixa, faltava-me Deus talvez. Pensei ainda no Diabo, na borracha, na diaba sangue-suga... Olhei para rua outra vez. Lá de cima, do 13ºandar, via apenas vultos e neblina. Os vultos me lembraram crimes dispersos na escuridão da hisória. Na escuridão qualquer um pode ser um criminoso, pensei. E se eu também cometesse um crime? Olhei os céus, a neblina, a rua silenciosa, mais escura agora, como a escuridão onde o diabinho se metera, escapando aos guilhoes dos diabos. Intuitivamente levei uma mão ao parapeito e me aproximei mais da janela, que estava aberta, depois apalpei a barriga, quando senti um enorme frio, parecia que me ia congelando. O meu vazio era já um grande vácuo, talvez uma alma impreenchível. Virei-me um pouco para traz e vi de longe a geladeira. Corri para dentro e fui assaltá-la. Improvisei misturando presunto e queijo com pão de forma, que levei ao microondas. Saciado, fui prcurar água e achei vinho tinto. Dormi tranquilo e não sonhei mais nada.
        Às nove horas fui acordado por um aroma delicioso, que me chegava ao olfato como incenso sagrado. Era o cheiro do café que vinha da cozinha. Levantei e fui anunciar que um assalto ocorrera de noite, à geladeira, e seria preciso comprar mais frios.

2 comentários:

  1. Olá
    Sua criatividade a toda prova.Ainda bem que os pesadelos foram esquecidos ao amanhecer e ficou só a lembrança do assalto à geladeira.
    Parabéns.
    Elis

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  2. Muito interessante o texto, querido amigo. Mais análise mandei para seu e-mail. grande abraço.

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