sexta-feira, 21 de outubro de 2022

A ALEGRIA DA PERUADA E O DESESPERO DE HEITOR

 

Hoje é dia de Peruada.

Para quem não conhece, defino-a como a festa ao direito de todas as liberdades.

Como paulistano adepto do centro histórico, estou acostumado a vê-la faz algum tempo.

Conheci o centro histórico no início da adolescência. Aos treze anos, já o frequentava, procurando trabalho pela selva de pedras. Daí em diante, fui apreciando suas oferendas e desvencilhando-me de seus perigos.

A Peruada, contudo, era um encanto. Cores, cantos e liberdades incontidas por um dia. A troca dos livros jurídicos, do paletó e da gravata pelas fantasias reunindo não apenas alunos franciscanos, mas gentes de todos os cantos.

Já adulto, mudando-me para o centro e, depois, instalado no escritório advocatício na José Bonifácio, a alguns passos dessa oitocentista escola jurídica das arcadas, onde a festa nascera para, depois, ganhar as ruas, continuei a observar a festa, cada vez mais popular e cada vez mais sonora e mais socialmente temática, definindo-se por alguns como passeata política-etílica-carnavalesca.

Confesso, entanto, que as cores, às vezes, também assustam. Vejam o que ocorreu na última edição da folia antes da pausa que lhe fez a Pandemia.

Heitor ia pelos dois anos e pouco. À porta do prédio o pequeno saltitava diante das cores que lhe enchiam os olhos, brotando, pelo início da manhã, da escadaria do metrô, juntamente com trabalhadores que iam aos seus postos de trabalho, esparramando-se rua acima, rumo à Faculdade de Direito, passando pela quatrocentona Igreja de São Francisco.

Cantos, falas e risos subiam pelos ares de uma manhã quente; gente e mais gente, dessedentando-se nas latinhas de cerveja e bebericando nas garrafinhas de jurupingas, faziam o menino pular e gritar efusivamente no colo do pai.

De repente, a alegria acabou.

Mais abaixo, vinha um grupo peculiar; entre eles, à medida que subia do vale, saindo da estação, ia ampliando-se um enorme pavão, que se destacava entre as demais fantasias, pelo tamanho, pelas cores chamativas, pelo brilho das enormes penas, diante das quais os outros componentes que seguiam ao seu lado diminuíam-se em suas microssaias arredondadas que subiam para a barriga com o movimento que o rebolar incontido de suas danças fazia.

Era um grupo pequeno- seis ou sete, nenhum mais- que, no entanto, fazia barulho e se destacava entre os outros que enchiam rua. O pavão parecia o chefe, pois os outros que vinham nas microssaias obedeciam ao comando de seu canto de guerra:

-Meu p... é grande? Perguntava o pavão.

-Não!- respondiam os outros,

-Meu p...u é pequeno?-

-Não! – respondiam os outros, emendando em seguida, o coro entusiasmado:

- Meu p... é médio. Meu ...au é médio...

Heitor, que parecia agora em pânico, não se distinguia mais no colo do pai. Ou, para ele, o pai não se distinguia da turba amorfa que se movia e se agitava como uma cobra coral que se curvilineava como rabiolas coloridas ao soprar frenético de vento desvairado.

Nesse desespero, num ímpeto definitivo para escapar-se dos braços que o sustentavam, jogou-se na direção da primeira mulher que surgiu a sua frente, cruzando o saguão à porta do elevador.

-Não! Eu não sei cuidar de criança- disse, assustada, a vizinha do quarto andar, cujos braços o pequeno julgara ser de sua mãe ou de outra protetora que lhe trazia o socorro.

Quando entrei, a mãe, que ouvia de longe os gritos da criança, indagou com tamanha autoridade que me pareceu investida pelo Ministério Público:

-O que você fez com ele?

-Eu?... ele foi assustado- disse sem ver como explicar logo o caso.

-Quem o assustou? - replicou ela, emendando mais firme ainda:

-Diz logo, quem fez isso com o menino?

-Excelência, disse eu finalmente- foi o bloco do pinto mole.

 

Autor Elói Alves, advogado e professor, formado em Letras pela Universidade de São Paulo-USP e em Direito pela FMU, autor, entre outros, dos livros O olhar de lanceta: ensaios críticos sobre literatura e sociedade e do romance As pílulas do santo Cristo.

 

 

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sábado, 1 de outubro de 2022

PREFÁCIO À 3ª EDIÇÃO DO LIVRO 'CONTOS E CAUSOS NOTARIAIS'

 


O livro Contos e causos notariais, de autoria do Professor e Tabelião Arthur Del Guércio Neto, chega a sua aguardada terceira edição, enriquecido por novos textos cujas características narrativas, analisadas no prefácio à primeira publicação, estão ainda mais maturadas pelo talento e apuro do autor. A isso se somam, também, novos aspectos jurídicos, além de questões de cidadania, que se vão entrelaçando, por um típico ofício de escriba.

O escriba era, desde a antiguidade, um notável cidadão, que, antes da difusão social do letramento escolar, lia e escrevia, sobretudo textos sagrados e jurídicos, pontuando fatos, registrando pactos e redigindo documentos próprios à Administração, além de compor as crônicas da vida dos reis. Tinha, assim, uma auctoritas, detinha saber e técnica que o notabilizavam em uma sociedade ágrafa, gozando da confiança de todos e de, por assim dizer, fé pública.

O escriba, que também se fez presente na idade média como cronista régio, emprestava, ab manu, as características indeléveis da forma de sua escrita, ora nos hieróglifos dos textos sagrados, ora nos rolos de papiro dos documentos oficiais do Egito antigo; hoje, o tabelião, herdeiro dessa tradição,  empresta também seu olhar peculiar para qualificação dos títulos que se lhe apresentam e para se redigirem escrituras públicas, além de outros atos notariais, como a ata notarial, meio de prova consagrado pela lei processual civil em vigor,  cuja eficaz elaboração exige apuro técnico, narrativo e descritivo, ademais do saber jurídico imprescindível ao ofício e domínio da língua com a qual trabalha. Esse modo de ver aparece também em Machado de Assis, que pinta o olhar do tabelião, personagem do conto O EMPRÉSTIMO, como “cortante e agudo”, como se observou, juntamente à análise de seu peculiar antagonista em ensaio que compõe O olhar de Lanceta, que publiquei em 2015.

À presente edição se acresceram textos como “A fonte dos desejos”, em que ressurge o saboroso talento narrativo do autor destes Contos e Causos, características mais profundamente analisadas no prefácio à primeira edição, cujo texto o leitor tem à disposição nesta obra. Ainda mais: “As eleições e os cartórios, “A ilusão dos R$ 103.141,14 mil”, “Dia Nacional do Notário e do Registrador”, “O coronavírus e os cartórios”, além de “A nova lei dos registros públicos” ampliaram a publicação atual. Temas como nascimentos, casamentos, uniões estáveis, óbitos, negócios imobiliários, protestos são abordados pelo autor, destacando-se o papel cívico da atividade notarial e registral, denominada, no Registro Civil, como “ofícios da cidadania”.

A todos, boa leitura!

 

Por Elói Alves, professor e advogado, formado em Letras pela Universidade de São Paulo-USP e em Direito pela FMU, autor, entre outros, dos livros O olhar de lanceta: ensaios críticos sobre literatura e sociedade e do romance As pílulas do santo Cristo.

O prefácio à 1ª edição, em que analisei outras características do livro, pode ser lido por meio link:  REAL COM ARTE: O letrófilo: PREFÁCIO PARA O LIVRO "CONTOS E CAUSOS NOTARIAIS", DO JURISTA ARTHUR DEL GUÉRCIO

O livro e outros textos do autor prefaciado podem ser conferidos em sua página: BLOG do DG

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Estas Tonne e sua mágica poesia sonora ucraniana


Entre as belezas e maravilhas que a Ucrânia proporciona está o mágico músico Estas, que há muito me encanta e alimenta minha alma com seus sons poéticos. Gostaria de compartilhá-lo com os amigos neste momento triste e trágico por qual passa seu país, causado pelos líderes políticos medíocres de alma e de cérebro. Um abraço esperançoso.
Estas dá à alma dos homens sensíveis uma poesia sonora que cura, pacifica e sensibiliza por meio de seu dedilhar mágico.

terça-feira, 19 de outubro de 2021

CONSIDERAÇÕES SOBRE O MEIO AMBIENTE COMO BEM PÚBLICO

A ordem constitucional da República brasileira elevou o “meio ambiente ecologicamente equilibrado” à condição jurídica de direito fundamental (art. 225, Constituição Federal de 88), embora fora do rol do artigo 5º, que não é, portanto, rol taxativo. Tal proteção pétrea coloca-o como um bem público a ser protegido pelo Estado como componente indispensável à satisfação da existência humana em seu território, como indispensável para a ”sadia qualidade de vida” . 

Para que haja efetivação dessa garantia constitucional, impôs-se ao Poder Público a incumbência (art. 225, V, CF) de preservação e restauração dos processos ecológicos essenciais, que inclui o cuidado e proteção de elementos bióticos e abiótico, como integrantes do meio ambiente. 

A Carta magna institui no sistema de proteção do meio ambiente a competência de todos os entes federativos, seja comum ou concorrente (arts 23, III) como o cuidado com as paisagens naturais, sítios arqueológicos etc, e legislar (24, VI, CF) sobre florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, cuidado do solo entre outros; competência que se estende aos municípios, de forma suplementar (art. 30, I, II, CF). A própria ordem econômica (art. 170, CF) deve se dar de acordo com defesa do meio.

Infraconstitucionalmente, a lei 9.985, regulamentando o artigo 225, da CF, cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, conceituando unidade de conservação, diversidade biológica, recurso ambiental, entre outros elementos componentes do meio ambiente, prescrevendo a proteção integral dos elementos bióticos e abióticos.

Por sua vez, o CDC (Código de Defesa do Consumidor), com objetivo de proteção contra produtos nocivos à vida do consumidor institui sanções administrativas, penais e civis dentro de um microssistema jurídico de proteção do Estado ao hipossuficiente. Nesse sentido as penas de multa, apreensão de produtos, entre outros. 
Elói Alves

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

GRATIDÃO AOS MESTRES

Deixando aqui meu abraço agradecido por tantos grandes mestres que tive, dos quais alguns, vivos em memória imperecível, já aqui não se encontram. Seus ensinos são bússola neste mar revolto, que revira-se, sacode-se diante de tantos males e perigos que se agigantam e até diminuem a fé; mestres cuja obra é inapagável, embora haja tantos que a queiram destruir para poder manter seus postos conquistados com base na mentira e na ignorância.

terça-feira, 7 de setembro de 2021

BREVE ANÁLISE DO POEMA 'CAMPOS DO JORDÃO', DE ARTHUR DEL GUÉCIO NETO

 

Abaixo, compartilhei uma breve análise do poema Campos do Jordão, do escritor e poeta Arthur Del Guércio Neto, cujos textos tenho lido prazerosamente.
 

Campos do Jordão 

 

A nossa conexão 

Tem raízes em outra dimensão 

Penso eu 

Fincadas no coração 

 

Ainda criança e adolescente

Tive a felicidade de experimentar o seu encanto

Não só baseado no frio

De que as pessoas falam tanto 

 

Verde Natureza

Azul Céu 

Águas em cachoeiras

Que escorrem como um véu 

 

Em 2005 fui em ti morar

Para minha jornada como Tabelião iniciar

Foram lindos 7 anos

E um até logo acenar

 

Mesmo à distância

Não consegui me separar

E após alguns anos

Com uma Jordanense vim a me casar

 

Daí por diante, cada vez mais me preenchi de Campos do Jordão

Com o ar inflando o pulmão

Tive a honra de receber o título de Cidadão (Jordanense)

E a ti Campos do Jordão entregar os meus filhos

 

Nada mais justo

A quem tanto me doou

Sem nada pedir em troca

Em minha vida se consolidou

 

Nesse constante vai e vem

Guardo comigo

Uma grande e absoluta certeza

A de ti não viver SEM!

 

Análise do poema


O azul céu

Já de início se nota a cuidadosa construção artística, com a forma usada para construir o ritmo, as rimas, em sua elaboração alternada que forma uma deliciosa cadência, com uso de rimas ricas, como se vê em par “encanto/tanto”(2ª estrofe), surgindo uma notável sonoridade poética, com a bem trabalhada diversidade das categorias gramaticais.

Por todo o poema se espalha sensibilidade poética e um lirismo que reflete o eu-lírico na pessoa do próprio poeta, seu encanto pela cidade que o recebe e que dele recebe gratidão retribuída.

Ainda, no mesmo soprar lírico, os encantos verdejantes, o “Azul Céu” e “Águas em cachoeiras” “escorrem como um véu”, numa bela integração com a natureza vitalizada e iluminada pelo olhar poético, somente possível pela sensibilidade que não se integra à mesquinhez do imediatismo e da ação apressada e míope que amarelece o verde e escurece o azul do céu.

 

 Elói Alves

 

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Comunicação e Língua Portuguesa

 

Este texto foi escrito para o blog jurídico DG, que comemora seu 4º ano


A comunicação humana, verbal ou não verbal, é uma via de mão dupla entre emissor e receptor, uma vez que este decodifica ou interpreta a mensagem daquele. Quando se esquece disso, independentemente do tipo de linguagem em uso, se coloquial ou formal, corre-se o risco de não ser compreendido. Deve-se isso ao aspecto social da comunicação, que envolve necessariamente o outro, em que o locutor precisa ser minimamente eficiente no trato do código linguístico para ser compreendido por seu interlocutor, a pessoa com quem pretende se comunicar objetivamente.

Nesse sentido, faz-se necessário o conhecimento da língua e, por conseguinte, de sua gramática, que expõe seu funcionamento, seja do ponto de vista pragmático, histórico ou normativo. No dia a dia alguns descuidos no uso de expressões linguísticas podem dificultar o sucesso da comunicação. Exemplo disso é o uso incorreto de ir de encontro no lugar da expressão oposta ir ao encontro.

Ir de encontro significa discordar de, portanto, traz a ideia de confronto. Um exemplo desse uso: Minha conclusão vai de encontro à sua. Aí expressa-se divergência entre as conclusões dos interlocutores. Ao contrário, ir ao encontro apresenta a ideia de concordância, de convivência harmônica entre pensamentos, por exemplo. Por isso, a confusão no uso dessas expressões pode gerar incompreensão, os chamados ruídos ou, de fato, ausência de efetiva comunicação.

Outro equívoco recorrente aparece no uso dos parônimos, vocábulos cujas grafias se parecem, mas que trazem significados diferentes e, até, opostos. Entre eles aparecem os pares deferir (atender) e diferir (divergir, distinguir-se), eminente (elevado) e iminente (prestes a ocorrer), descrição (descrever algo ou alguém) e discrição (de discreto), emigrar (deixar um país) e imigrar (entrar em um país), flagrante (evidente) e fragrante (perfumado), fusível (que funde) e fuzil (arma de fogo), imergir (afundar) e emergir (vir à tona), inflação (alta dos preços) e infração (falta, delito), ratificar (confirmar) e retificar (corrigir), soar (de som) e suar (transpirar), tráfego (trânsito) e tráfico (comércio ilegal).

A convite do dileto Doutor Arthur voltaremos brevemente à análise das questões linguísticas referidas acima, esperando, gratamente, pelos gentis amigos leitores.

Elói Alves

link do artigo no DG: https://www.blogdodg.com.br/artigo.php?id=84

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

SOBRE 'O DIÁRIO DO GATO TOM', DE CARLOS TORRES


 Ilustração de Yanna Líllian

 

Pôs em mim dois olhos de gato que observa

Machado De Assis

 

Quando recebi a notícia da publicação de “O DIÁRIO DA GATO TOM, de Carlos Torres, fiquei feliz como um paciente que recebe do médico as boas novas para sua saúde.

Embora se tratasse de um livro infantil, que, por natureza, diferiria de suas crônicas ou contos para leitores maduros que eu já conhecia, a perspicácia do gato como narrador-personagem me encantou logo. Assim que o li, as impressões se confirmaram.

Mas não é de técnica narrativa que se trata, simplesmente - digo eu, e acho que com acerto. A relação afetuosa e fraternal entre Carlos e Tom é peculiar da pessoa humana e do profissional, editor e diretor cultural, do ser sensível que não metamorfoseia sentimentos e posturas diante do mundo, da pessoa analítica e meiga ao mesmo tempo. Como o gato, carinhoso e perscrutador, personagem do livro.

Há algo de alter ego, de quem vê no outro - e no próprio gato -, empaticamente, a semelhança que temos perdido uns dos outros; semelhança que um dia se disse de Deus. No Gato Tom, Carlos olha pela janela do mundo e encontra um espelho, onde enxerga o desejo humano de ser, a esperança de andar até alcançar e de se erguer diante dos desafios e realizar(-se): de escrever o seu diário.

O livro, publicado pela Editora Essencial, tem ainda belas ilustrações de Yanna Líllian, com posfácil de Vanda Felix.

Elói Alves

 

 

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