segunda-feira, 2 de setembro de 2013

CONFISSÕES DE UM MORIBUNDO

        Estava à morte quando mandou que chamassem o filho. Havia anos que não se viam. Quando se separou da mulher, o menino contava dez anos. Veio vê-lo umas vezes, ainda pequeno, para sumir logo que crescera. Depois voltou uma vez, já doutor e pai, quando lhe trouxe o neto ao colo e em fraldas.
     -Tem visita, seu Inácio- disse a enfermeira que passava para lhe dar o remédio.
       Olharam-se um tempo sem trocar palavras. O silêncio do quarto, o branco dos lençóis, o doente levemente esticado que lhe lançava um olhar vagaroso, encheram o local de uma reverência ritual e pia. O que chegava manteve-se com as mãos atadas às costas, o paciente conservou-se imóvel e sereno. Olharam-se assim por um tempo curto e eterno, de que só um relógio imaterial e sublime poderia contar as batidas.
       O doente soltou um débil gemido ao tentar erguer-se.
       -Não se esforce.
       -Vou me sentar.
    Ao pé da cama havia a uma cadeira. O visitante a arrumou quietamente perto de si e sentou-se. Os olhares eram curtos e silenciosos. Apenas o correr do soro, posto ao lado da cama, quebrava a monotonia. Acima da cabeceira, na parede branca, ia um Cristo de olhos azuis, tão monótono como tudo mais que compunha aquele quarto de moribundo.
     -Sabe que não minto, Otávio- disse o homem depois de olhar um tempo para o filho. Não lhe chamei aqui para uma despedida nem para desculpas, mesmo sabendo que esta é a minha hora. Mas tenho uma coisa que só posso dizer a ti, e não podia revelar se ainda tivesse poder sobre essa carcaça fria.
        -Não diga assim, ainda está forte.
     -Não estou nem posso enganar-me. Há dois anos que as máquinas lavam meu sangue. Vi aqui vários homens fortes irem secando. Um dia você vê não aparecer um, noutro dia dá falta de outro. Depois de um tempo, a gente se vê como eu agora estou, sem mandar mais nos meus músculos. Tenho resistido até aqui, mas não tenho mais força. O que me resta, quero gastar num pedido último que é também uma confissão.
        -Diga, diga!- disse o outro, num tom de espera e sede do que quer que fosse que viesse.
       -Sei que pensa que nunca gostei de ti, de tua mãe, que não lhe dei amor.     Agi sempre como um bruto, longe de casa, negociando dentro do balcão de um bar, cobrando os devedores safados com a peixeira na cinta e revolver na bota e lidando com bêbados impertinentes. O que não dei, eu também não tinha.
         -Não tenho queixas...
       -Bem, e nem é preciso lhe dizer o que sabe. O que preciso contar, e que não disse a ninguém, é que você tem um irmão que não conhece.
       Neste momento a enfermeira retornou ao quarto e o homem suspendeu a narrativa. Engoliu outro comprimido e tomou a água, olhando vagamente para as pontas dos pés cujo formato aparecia sob o lençol branco e terminava mirando um vazio que se estendia ao longe, como se olhasse o infinito.
      O silêncio se espalhava por tudo, absoluto, até que uns tamancos brancos soaram à porta, retirando os olhos do homem das profundezas de um mundo vago, para logo desaparecer de novo pelo corredor imenso sob uma luz rala.
     -Nem tudo posso contar, - retomou vagarosamente o doente - tem muita coisa que levarei comigo. Mas o menino só tem agora a tu nesse mundo. A mãe anda perdida pela vida, nos lugares que a gente se conheceu, e o pequeno está no sertão nas mãos da avó já quase morta. Tenho lhe mandado sempre o sustento, mas tudo isso até hoje em segredo. Tenho juntado o bastante, para muitas vidas, mas o menino pede também dois olhos que lhe vejam crescer nesse mundo sem fim.
      A médica entrou com alguns papeis e aparelhos. Olhou o paciente, que se calara, e o ajeitou sobre a cama. Em seguida, verificou alguns dados e se retirou. O doente fechou os olhos e adormeceu. No dia seguinte, deu-se a noticia de sua morte.
       Mais de um ano havia se passado quando Otávio, com a camisa branca rasgada pelos matos afoitos, com uma foto na mão, entrou pelo sertão da Bahia, indo achar trabalhando sob sol escaldante, com uma enorme foice nas mãos, no meio do canavial, um menino de dez anos em quem rapidamente reconheceu seu irmão.
Elói Alves
do livro Contos Humanos



sábado, 24 de agosto de 2013

A MUDEZ DOS HOMENS

Dobro a esquina na noite escura
As ruas estão mais encardidas sob a luz opaca
Um vulto segue lento à minha frente
Curvo, enterra a cabeça sob um fardo rude
Tento apertar os passos mas não posso
Trago dias imensos atados às pernas
Por um tempo, nossa distância não se altera...

Junto aos postes, paramos duros à faixa

As luzes passam incontáveis enfeitando as paragens úmidas
De um prédio imenso uma lâmpada clareia um rosto engravatado que se aproxima
Algo de tenso e triste se lhe entrevê antes que da luz se oculte
Os carros param, o sinal se nos abre, os passos soam

E os homens somem mudamente no meio da noite fria
Elói Alves

A busca de Pedro Homiliano


terça-feira, 20 de agosto de 2013

A BUSCA DE PEDRO HOMILIANO

          Já na infância Pedro Homiliano parecia-se desencontrado. Na escola, aprendia tudo ao mesmo tempo em  que ia desaprendendo as coisas.
          Os pais não se viam plenamente refletidos nas maneiras e no desenvolvimento do filho e o toleravam resignados, até o dia em que a mãe o encontrou pelado com outros meninos na casa dos fundos, castigando-o e restringindo-lhe os espaços.
          Não foi o melhor ou o pior da escola. Dedicou-se, porém, a fôlego curto, dispersando-se entre desejos desencontrados. Aos dezoito anos entrou para faculdade. Longe dos olhos dos pais, vivendo agora numa república de estudantes, deixou romperem-se os últimos fios que enrolavam-se às asas de seus sonhos de vida livre e aventurosa, embora não abrisse mão dos recursos que lhe enviavam  os pais.
          Passados os primeiros tempos de aulas intermitentes, abraçou-se a uma depressão fina e aguda que lhe trocou os olhos claros e vivos por outros abstratos e curtos, tímidos, que não ousavam estender-se senão aos copos de cerveja e a outras companheiras mais quentes que pediam cigarros e mais cigarros, indo dai a dar serviço aos médicos por um longo tempo, sonso e taciturno.
          Posto de lado o jornalismo, passou a cursar direito, que durou pouco. Deste foi ao teatro, para logo o largar, quando passou num concurso público que deixou apenas se achou nele empossado.
          De quando em quando ia ver os pais. Beijava a mãe, abraçava o velho e obtinha deste algum dinheiro que dissipava logo. Depois trabalhou, amou e desamou a homens e mulheres guardando sempre uma imagem longínqua do que se passava, junto de uma saudade triste e lenta e partia levando sempre a mesma insatisfação diluída em afazeres vagos e imprecisos, monótonos como o cinza imenso que derramava-se pelos céus, nos dias de ventos frios que lhe cortavam a pele.
          Aos vinte e cinco anos, entrou pelo caminho de uma seita; depois a trocou por outra; que foi substituída pela seguinte; que teve também sua sucessora; até que encontrou a única, a definitiva, sua porta aberta sob feixe de luz pela qual entrou de cabeça ereta e busto soberbo.
         Depois de uns meses, vestido num manto especial, ingressou no grupo de missionários e foi à Amazônia salvar alguns índios. Logo na chegada, desgarrou-se de seu pequeno grupo e entrou pela mata densa. Nas buscas contínuas, seguiram seus passos e refizeram o caminho pelo qual se embrenhara, chamando alto pelo seu nome, que ecoava forte, repartindo-se por espaços longínquos, até perder-se, de todo, entre as árvores frondosas e infinitas, deixando no ar, até hoje, o vazio do desconhecimento de seu destino.
Elói Alves
do livro Contos humanos




Os ratos e os reis do Brasil
http://realcomarte.blogspot.com.br/2013/08/os-ratos-e-os-reis-do-brasil.html

domingo, 18 de agosto de 2013

O AÇO ESCURO

A manhã fez-se escura
A noite misturando-se ao dia
Tudo opaco e tristonho
Uma larga indisposição encobre as atitudes
O tempo não anima à esperança
O vício espalha-se encolhendo os fortes
O aço escuro o recobre
A conformidade dissolve-se nos seres
O grito aborta-se friamente ante o peito   
Elói Alves

terça-feira, 13 de agosto de 2013

OS RATOS E OS REIS DO BRASIL


           O Brasil não tem monarquia, já há mais de cem anos,  mas tem reis, diversíssimos, inumeráveis. E como um rei não vive com pouco, dito antigo de Rabelais, é preciso vesti-los, a cada canto e por todo o corpo, com a mais esplêndida  gastança.
            Nem sempre se há de querer rei com pompa em toda potestade ou o sonho com a volta dos que se foram, como o imortal e desaparecido D Sebastião. Na Suécia mesmo dá-se outra coisa que em Roma e numa outra república abaixo dos trópicos. Lá, se o rato roer a roupa do primeiro ministro, este terá de costurá-la, pois não dispõe de mil servos para servi-lo à cama sempre que o queira, e a todo canto, a tempo e hora:
           -A comida do rei!
           -O vinho do rei!
           -As calças do rei!
          -O avião do rei!
           -As diversões do rei!
  Mas abaixo da linha do equador não há pecado, já se dizia no período da colonização. Ausência de títulos hierárquicos ou nobiliárquicos não os desautoriza a vida que exigem e que lhes dão; ao contrário, autoriza-os muito maior disposição ao preito e à realeza, mesmo despido de toda nobreza. Assim, o deputado reina com toda grandeza; o vereador, com toda imponência; os ministros, com toda gastança, convictos da grande tolerância das leis flexíveis e da bajulação dos que se lhes curvam como a um trono, tendo o país um rei para cada parte, mesmo que se reúnam todos em só um canto, para juntos melhor roerem o que o trabalho alheio, o suor e a exploração ajuntaram.
Elói Alves

terça-feira, 30 de julho de 2013

A NAVE BRASIL - Perguntero

      

     A pergunta parece óbvia, mas ela cabe: quem se arriscaria a embarcar num avião cujo piloto nunca sabe das coisas e, além  dele, essa característica degenerativa se espalhasse para  seu copiloto e demais tripulantes?
      Talvez o perigo fosse menor num navio do qual os passageiros - como é tradição nos naufrágios- pudessem sair antes que a tripulação, escapando nos botes ou salvos por barcos vizinhos.
      O problema se torna complexo quando se sai da ficção e se vê que o navio pode ser o país e todos seus passageiros-cidadãos veem-se sob desgovernos vários, que não sabem o que o povo realmente sofre, quem verdadeiramente o rouba, que a justiça realmente não anda. Pelo menos não anda em certa direção, porque para não punir, para não repatriar recursos desviados, ela é orgânica e estruturalmente veloz.
      Quando se trata de imunizar corruptos, fraudadores dos cofres públicos, as leis e seu cumprimento são céleres e ágeis como um fórmula 1, nada tendo por aí de moroso.
      O que se vê na realidade, na imensa Nave Brasil, é que o piloto e seus serviçais não sofrem qualquer escoriação, mesmo que as turbulências sejam fatais para a maioria. Para aqueles, sempre há uma saída especial cuja alcunha é conhecida como imunidade, foro privilegiado, jurisprudência, recursos incontáveis e, em último caso, um habeas corpus preventivo que lhe reafirma o direito de permanecer calado para não ter o dissabor de se explicar nem confessar improbidades.
      - Você aí, trouxe o passaporte ou o bilhete único do transporte público?
Zé Nefasto Perguntero

sexta-feira, 26 de julho de 2013

TIO GERBÚLIO, CORONEL TEOFOLDO E A MULTIPLICAÇÃO DA CACHAÇA

      Coronel Teofoldo mandara recado para que tio Gerbúlio fosse ter com ele na fazenda o mais rápido que pudesse para tratar de negócios. Chegando lá, o coronel o cumprimentou expansivo, descendo do belo burro Panglós que era seu predileto e ao ouvido do qual filosofava em suas voltas por suas terras.
     -Agora que temos boas estradas na fazenda, estou a ampliar os negócios, compadre Gerbúlio – disse Teofoldo, apertando bastante as mãos do tio. Quero lhe fornecer umas cachaças que tenho feito cá e das boas.
    Entraram ambos na cachaçaria feita de tábuas de peroba. No alto havia muitas garrafas dispostas em prateleiras. No chão, avizinhavam-se diversos barris de madeira.
     -É tudo feito aqui, compadre Gerbúlio, mas diversificado para cada canto que mando. Para os bares da redondeza, tenho umas mais fracas, feito com quantidade a mais de água. As que mando para o governador é dessa do barril de carvalho. Vou lhe mandar das mais baratas para vender no bar.
    No dia da entrega havia chovido muito e, ao invés da cachaça, Gerbúlio recebeu um bilhete do coronel avisando do acidente com a carga. Nas margens do rio onde começava a vila, o burro que trazia a cachaça emperrou e, com um tranco que deu, mandou a remessa toda para o meio das águas que vinham altas e furibundas.
      Gerbúlio, lendo o bilhete na porta do bar e olhando o tempo, o vai e vem das nuvens, concluiu indiferente:
       -Bem, água deu, água levou.
Jão Gerbulius Sobrinho

Leia o prefácio do romance "As pílulas do Santo Cristo" de Elói Alves

Primeito capítulo:

Segundo Capítulo:

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