quinta-feira, 19 de setembro de 2013
segunda-feira, 2 de setembro de 2013
CONFISSÕES DE UM MORIBUNDO
Estava
à morte quando mandou que chamassem o filho. Havia anos que
não se viam. Quando se separou da mulher, o menino contava dez
anos. Veio vê-lo umas vezes, ainda pequeno, para sumir logo que
crescera. Depois voltou uma vez, já doutor e pai, quando lhe
trouxe o neto ao colo e em fraldas.
-Tem
visita, seu Inácio- disse a enfermeira que passava para lhe
dar o remédio.
Olharam-se
um tempo sem trocar palavras. O silêncio do quarto, o branco
dos lençóis, o doente levemente esticado que lhe
lançava um olhar vagaroso, encheram o local de uma reverência
ritual e pia. O que chegava manteve-se com as mãos atadas às
costas, o paciente conservou-se imóvel e sereno. Olharam-se
assim por um tempo curto e eterno, de que só um relógio
imaterial e sublime poderia contar as batidas.
O
doente soltou um débil gemido ao tentar erguer-se.
-Não
se esforce.
-Vou
me sentar.
Ao
pé da cama havia a uma cadeira. O visitante a arrumou
quietamente perto de si e sentou-se. Os olhares eram curtos e
silenciosos. Apenas o correr do soro, posto ao lado da cama, quebrava
a monotonia. Acima da cabeceira, na parede branca, ia um Cristo de
olhos azuis, tão monótono como tudo mais que compunha
aquele quarto de moribundo.
-Sabe
que não minto, Otávio- disse o homem depois de olhar um
tempo para o filho. Não lhe chamei aqui para uma despedida nem
para desculpas, mesmo sabendo que esta é a minha hora. Mas
tenho uma coisa que só posso dizer a ti, e não
podia revelar se ainda tivesse poder sobre essa carcaça fria.
-Não
diga assim, ainda está forte.
-Não
estou nem posso enganar-me. Há dois anos que as máquinas
lavam meu sangue. Vi aqui vários homens fortes irem secando.
Um dia você vê não aparecer um, noutro dia dá
falta de outro. Depois de um tempo, a gente se vê como eu agora
estou, sem mandar mais nos meus músculos. Tenho resistido até
aqui, mas não tenho mais força. O que me resta, quero
gastar num pedido último que é também uma
confissão.
-Diga,
diga!- disse o outro, num tom de espera e sede do que quer que fosse que viesse.
-Sei
que pensa que nunca gostei de ti, de tua mãe, que não
lhe dei amor. Agi sempre como um bruto, longe de casa, negociando
dentro do balcão de um bar, cobrando os devedores safados com
a peixeira na cinta e revolver na bota e lidando com bêbados
impertinentes. O que não dei, eu também não
tinha.
-Não
tenho queixas...
-Bem,
e nem é preciso lhe dizer o que sabe. O que preciso contar, e
que não disse a ninguém, é que você tem um
irmão que não conhece.
Neste
momento a enfermeira retornou ao quarto e o homem suspendeu a
narrativa. Engoliu outro comprimido e tomou a água, olhando
vagamente para as pontas dos pés cujo formato aparecia sob o
lençol branco e terminava mirando um vazio que se estendia ao
longe, como se olhasse o infinito.
O
silêncio se espalhava por tudo, absoluto, até que uns
tamancos brancos soaram à porta, retirando os olhos do homem
das profundezas de um mundo vago, para logo desaparecer de novo pelo
corredor imenso sob uma luz rala.
-Nem
tudo posso contar, - retomou vagarosamente o doente - tem muita coisa
que levarei comigo. Mas o menino só tem agora a tu nesse
mundo. A mãe anda perdida pela vida, nos lugares que a gente
se conheceu, e o pequeno está no sertão nas mãos
da avó já quase morta. Tenho lhe mandado sempre o
sustento, mas tudo isso até hoje em segredo. Tenho juntado o
bastante, para muitas vidas, mas o menino pede também dois
olhos que lhe vejam crescer nesse mundo sem fim.
A
médica entrou com alguns papeis e aparelhos. Olhou o paciente,
que se calara, e o ajeitou sobre a cama. Em seguida, verificou alguns dados e se
retirou. O doente fechou os olhos e adormeceu. No dia seguinte,
deu-se a noticia de sua morte.
Mais
de um ano havia se passado quando Otávio, com a camisa branca
rasgada pelos matos afoitos, com uma foto na mão, entrou pelo
sertão da Bahia, indo achar trabalhando sob sol escaldante,
com uma enorme foice nas mãos, no meio do canavial, um menino
de dez anos em quem rapidamente reconheceu seu irmão.
sábado, 24 de agosto de 2013
A MUDEZ DOS HOMENS
Dobro a
esquina na noite escura
As ruas
estão mais encardidas sob a luz opaca
Um vulto
segue lento à minha frente
Curvo,
enterra a cabeça sob um fardo rude
Tento
apertar os passos mas não posso
Trago dias
imensos atados às pernas
Por um
tempo, nossa distância não se altera...
Junto aos
postes, paramos duros à faixa
As luzes
passam incontáveis enfeitando as paragens úmidas
De um
prédio imenso uma lâmpada clareia um rosto engravatado que se aproxima
Algo de
tenso e triste se lhe entrevê antes que da luz se oculte
Os carros
param, o sinal se nos abre, os passos soam
E os
homens somem mudamente no meio da noite fria
Elói Alves
A busca de Pedro Homiliano
terça-feira, 20 de agosto de 2013
A BUSCA DE PEDRO HOMILIANO
Já na
infância Pedro Homiliano parecia-se desencontrado. Na escola, aprendia tudo ao mesmo tempo em que ia desaprendendo as coisas.
Os pais não
se viam plenamente refletidos nas maneiras e no desenvolvimento do filho e o
toleravam resignados, até o dia em que a mãe o encontrou pelado com outros meninos
na casa dos fundos, castigando-o e restringindo-lhe os espaços.
Não foi
o melhor ou o pior da escola. Dedicou-se, porém, a fôlego curto, dispersando-se
entre desejos desencontrados. Aos dezoito anos entrou para faculdade. Longe
dos olhos dos pais, vivendo agora numa república de estudantes, deixou
romperem-se os últimos fios que enrolavam-se às asas de seus sonhos de vida
livre e aventurosa, embora não abrisse mão dos recursos que lhe enviavam os pais.
Passados
os primeiros tempos de aulas intermitentes, abraçou-se a uma depressão fina e
aguda que lhe trocou os olhos claros e vivos por outros abstratos e curtos, tímidos, que não ousavam estender-se senão
aos copos de cerveja e a outras companheiras mais quentes que pediam cigarros e mais cigarros,
indo dai a dar serviço aos médicos por um longo tempo, sonso e taciturno.
Posto de lado o jornalismo, passou a cursar direito, que durou pouco. Deste foi
ao teatro, para logo o largar, quando passou num concurso público que deixou apenas se achou nele empossado.
De
quando em quando ia ver os pais. Beijava a mãe, abraçava o velho e obtinha deste
algum dinheiro que dissipava logo. Depois trabalhou, amou e desamou a homens e
mulheres guardando sempre uma imagem longínqua do que se passava, junto de uma saudade triste e lenta
e partia levando sempre a mesma insatisfação diluída em afazeres vagos e
imprecisos, monótonos como o cinza imenso que derramava-se pelos céus, nos dias de ventos
frios que lhe cortavam a pele.
Aos
vinte e cinco anos, entrou pelo caminho de uma seita; depois a trocou por outra; que
foi substituída pela seguinte; que teve também sua sucessora; até que encontrou a
única, a definitiva, sua porta aberta sob feixe de luz pela qual entrou de cabeça ereta e busto
soberbo.
Depois
de uns meses, vestido num manto especial, ingressou no grupo de missionários e foi à Amazônia
salvar alguns índios. Logo na chegada, desgarrou-se de seu pequeno grupo e
entrou pela mata densa. Nas buscas contínuas, seguiram seus passos e refizeram
o caminho pelo qual se embrenhara, chamando alto pelo seu nome, que ecoava forte, repartindo-se por espaços longínquos, até perder-se, de todo, entre as árvores frondosas e infinitas, deixando no ar, até hoje, o vazio do desconhecimento de seu destino.
Elói Alves
do livro Contos humanos
Elói Alves
do livro Contos humanos
Os ratos e os reis do Brasil
http://realcomarte.blogspot.com.br/2013/08/os-ratos-e-os-reis-do-brasil.htmldomingo, 18 de agosto de 2013
O AÇO ESCURO
A manhã fez-se
escura
A noite misturando-se ao
dia
Tudo opaco e tristonho
Uma larga indisposição
encobre as atitudes
O tempo não
anima à esperança
O vício
espalha-se encolhendo os fortes
O aço escuro o
recobre
A conformidade
dissolve-se nos seres
O grito aborta-se
friamente ante o peito
Elói Alves
terça-feira, 13 de agosto de 2013
OS RATOS E OS REIS DO BRASIL
O Brasil não tem monarquia, já
há mais de cem anos, mas tem reis, diversíssimos,
inumeráveis. E como um rei não vive com pouco, dito antigo de Rabelais, é
preciso vesti-los, a cada canto e por todo o corpo, com a mais esplêndida gastança.
Nem sempre se há de querer rei com pompa em toda potestade ou o sonho com a volta dos que se foram, como
o imortal e desaparecido D Sebastião. Na Suécia mesmo dá-se outra coisa que em
Roma e numa outra república abaixo dos trópicos. Lá, se o rato roer a roupa do
primeiro ministro, este terá de costurá-la, pois não dispõe de mil servos para
servi-lo à cama sempre que o queira, e a todo canto, a tempo e hora:
-A comida do rei!
-O vinho do rei!
-As calças do rei!
-O avião do rei!
-As diversões do rei!
-As diversões do rei!
Mas abaixo da linha do equador
não há pecado, já se dizia no período da colonização. Ausência de títulos
hierárquicos ou nobiliárquicos não os desautoriza a vida que exigem e que lhes
dão; ao contrário, autoriza-os muito maior disposição ao preito e à realeza, mesmo
despido de toda nobreza. Assim, o deputado reina com toda grandeza; o vereador,
com toda imponência; os ministros, com toda gastança, convictos da grande tolerância das leis flexíveis
e da bajulação dos que se lhes curvam como a um trono, tendo o país um rei para cada parte, mesmo que se reúnam todos em
só um canto, para juntos melhor roerem o que o trabalho alheio, o suor e a exploração ajuntaram.
Elói Alves
terça-feira, 30 de julho de 2013
A NAVE BRASIL - Perguntero
A pergunta parece óbvia, mas ela cabe: quem se arriscaria a embarcar num avião cujo piloto nunca sabe das coisas e, além dele, essa característica degenerativa se espalhasse para seu copiloto e demais tripulantes?
Talvez o perigo fosse menor num navio do qual os passageiros - como é tradição nos naufrágios- pudessem sair antes que a tripulação, escapando nos botes ou salvos por barcos vizinhos.
O problema se torna complexo quando se sai da ficção e se vê que o navio pode ser o país e todos seus passageiros-cidadãos veem-se sob desgovernos vários, que não sabem o que o povo realmente sofre, quem verdadeiramente o rouba, que a justiça realmente não anda. Pelo menos não anda em certa direção, porque para não punir, para não repatriar recursos desviados, ela é orgânica e estruturalmente veloz.
Quando se trata de imunizar corruptos, fraudadores dos cofres públicos, as leis e seu cumprimento são céleres e ágeis como um fórmula 1, nada tendo por aí de moroso.
O que se vê na realidade, na imensa Nave Brasil, é que o piloto e seus serviçais não sofrem qualquer escoriação, mesmo que as turbulências sejam fatais para a maioria. Para aqueles, sempre há uma saída especial cuja alcunha é conhecida como imunidade, foro privilegiado, jurisprudência, recursos incontáveis e, em último caso, um habeas corpus preventivo que lhe reafirma o direito de permanecer calado para não ter o dissabor de se explicar nem confessar improbidades.
- Você aí, trouxe o passaporte ou o bilhete único do transporte público?
Zé Nefasto Perguntero
sexta-feira, 26 de julho de 2013
TIO GERBÚLIO, CORONEL TEOFOLDO E A MULTIPLICAÇÃO DA CACHAÇA
Coronel
Teofoldo mandara recado para que tio Gerbúlio fosse ter com
ele na fazenda o mais rápido que pudesse para tratar de
negócios. Chegando lá, o coronel o cumprimentou
expansivo, descendo do belo burro Panglós que era seu
predileto e ao ouvido do qual filosofava em suas voltas por suas
terras.
-Agora
que temos boas estradas na fazenda, estou a ampliar os negócios,
compadre Gerbúlio – disse Teofoldo, apertando bastante as
mãos do tio. Quero lhe fornecer umas cachaças
que tenho feito cá e das boas.
Entraram
ambos na cachaçaria feita de tábuas de peroba. No alto
havia muitas garrafas dispostas em prateleiras. No chão,
avizinhavam-se diversos barris de madeira.
-É
tudo feito aqui, compadre Gerbúlio, mas diversificado para
cada canto que mando. Para os bares da redondeza, tenho umas mais
fracas, feito com quantidade a mais de água. As que mando para
o governador é dessa do barril de carvalho. Vou lhe mandar das
mais baratas para vender no bar.
No
dia da entrega havia chovido muito e, ao invés da cachaça,
Gerbúlio recebeu um bilhete do coronel avisando do acidente
com a carga. Nas margens do rio onde começava a vila, o burro
que trazia a cachaça emperrou e, com um tranco que deu, mandou
a remessa toda para o meio das águas que vinham altas e
furibundas.
Gerbúlio,
lendo o bilhete na porta do bar e olhando o tempo, o vai e vem das
nuvens, concluiu indiferente:
-Bem,
água deu, água levou.
Jão Gerbulius Sobrinho
Leia o prefácio do romance "As pílulas do Santo Cristo" de Elói Alves
Primeito capítulo:
Segundo Capítulo:
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"Um rei, longe de proprcionar subsistência a seus súditos, tira deles a sua" Rousseau, Contrato Social Acabo de vir...
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Prefácio para o livro Contos e Causos Notariais , de Arthur Del Guércio Neto, professor e jurista O presen...
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