(O texto a seguir é de autoria do historiador e professor Jomar Souza)
“Que os meus ideais sejam
tanto mais fortes quanto maiores forem os desafios, mesmo que precise transpor
obstáculos aparentemente intransponíveis. Porque metade de mim é feita de
sonhos e a outra metade é de lutas.” Vladimir Maiakóvski.
PARTE I
O texto,
encomendado por um jornal americano interessado pelos acontecimentos de então,
na Europa, não tirou de Marx a preocupação em manter o rigor teórico, marca que
o perseguiu por toda a sua trajetória intelectual-militante, reconhecida até
pelos adversários mais duros como Max Weber.
Ali aparece, junto à forma jornalística, uma imensa argúcia analítica,
fazendo do seu Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, um libelo digno de admiração
também pela estética, que combina a ironia mordaz com certa elegância inspirada
em leituras de gigantes da cultura alemã como Heine e Goeth. O livro confirma o
perfil polemista que desde a juventude usou como estratégia para dialogar com
obras de titãs como Kant, Aristóteles, Hegel e os coadjuvantes do idealismo
alemão, pertencentes à “esquerda hegeliana”, destacando o mais proeminente
dentre eles, Ludwig Feuerbach.
Esse escrito
elaborado durante o exílio em Londres, entre os meses de janeiro e março de
1852, ou seja, na sequência imediata ao “coup d‟ État” em 2 de dezembro 1851,
apresenta um Marx maduro, capaz de usar todo seu arcabouço teórico
materialista-dialético para compreender e explicar os acontecimentos políticos
e conjunturais da Europa e, em particular, da França.
Marx
acompanhou com grande interesse, através de livros, jornais e informes de
camaradas da Liga Comunista, a história da luta de classe na França, desde a
Grande Revolução de 1789, passando pelos acontecimentos de 1848-1851, até a
Comuna de Paris em 1871, a qual chamou de um “Assalto ao céu” pelo proletariado
parisiense. Se não bastasse tudo isto,
Marx ainda respirava os frescores da Revolução Francesa, pois esse
acontecimento não tinha mais que vinte nove anos quando do seu nascimento em
1818.
É preciso
antes de avançar nos comentários da própria obra, acrescentar que o Marx de
1852, embora arguto, irônico, dono do arcabouço do método do materialismo
histórico-dialético, que já dera passos importantes para compreender a base
material da sociedade capitalista, ainda não tinha pleno domínio sobre os
elementos mais estruturais e fundantes da ordem burguesa, coisa que iria
acontecer poucos anos depois no exílio londrino. Será a partir desse período
que os resultados mais fecundos da pesquisa na área da teoria econômica virão à
tona. Textos como Grundrisse e Contribuição para Uma Crítica da Economia
Política, ambos elaborados em 1858, traziam muito do que foi mais tarde exposto
em O Capital, lançado em 1867.
Agora,
voltando ao “Dezoito Brumário”, Marx abre seu texto com a paráfrase de Hegel: a
repetição na história só ocorre duas vezes, a primeira enquanto versão trágica
e a segunda, pela imposição farsante: O le grand de 1804 pour le petit de 1851!
O
texto é uma análise refinada da conjuntura para entender o porquê do fracasso
da Revolução de Fevereiro de 1848 e como, em lugar de afirmar seu objetivo
inicial, a república, resultou necessariamente em um governo de “tipo” novo, o
qual Marx conceituará de BONAPARTISMO. Diferente daquilo que alguns analistas
alemães contemporâneos de Marx nominavam de cesarismo, o Bonapartismo é
essencialmente resultado da luta de classe em determinadas conjunturas da
sociedade burguesa. A proeza analítica
de Marx leva a antecipar tal conclusão, confirmada pelos fatos que redundaram
na restauração de novembro de 1852, criando o Segundo Império, guiado pela
farsa napoleônica.
O artigo
começa pela apreensão primorosa da estrutura das classes sociais francesa após
a revolução de 1789. Diferente da análise empreendida em O Capital, em que, por
razões metodológicas, tem que abstrair as diferentes classes, para ater-se
apenas em expor a contradição fundante entre o capital e o trabalho, edificada
na relação antinômica da burguesia e o proletariado, no “Dezoito”, o percurso
analítico parte da realidade concreta para compreender a situação concreta da
Revolução de Fevereiro de 1848, a qual foi parida pela divergência entre
interesses econômicos e políticos das cinco classes em movimento de disputa. Os
conflitos trazidos à luz pela burguesia, nobreza, pequena-burguesia,
campesinato e proletariado ditaram os acontecimentos e, ao final de um ciclo de
três anos, um DÉCLASSÉ, um escroque, um violador, um aventureiro da pior
espécie, nas palavras irônicas de Marx, se apresentou, não como um acidente ou
milagre divino a descer a terra como “um raio em dia de céu azul”, mas como o
próprio “deus salvador”, acima de todos os interesses, para amparar com a
intercessão de 500 mil anjos nas alturas da burocracia estatal, assegurar a
sinecura aos vagabundos, a cobrança de impostos aos camponeses, a liquidez
hipotecária ao “lumpesinato financeiro”. O chefe da Sociedade Dez de Dezembro
não deixou de abençoar as guerras e salsichas para o ávido exército nacional, o
bastião da cidadania francesa, dos “droits de l‟homme” que leva à frente em
suas campanhas escrito em sua flag: libertè, fraternitè e egalitè dos
industriais, dos grandes comerciantes, da burguesia agrária. O dieu “Anão” não desamparou nem mesmo seus
concorrentes reais, aproveitando artilharia pesada contra seus castelos,
abençoou as duas casas monárquicas que por saeculum et saeculum usaram suas
bandeiras desbotadas da flor-de-lis e passaram a usar o colorido azul, vermelho
e branco da Marselhesa. “Marchons! Marchons!” porque nenhum cidadão naqueles 20
anos dourados de Bonaparte puderam ficar de fora da contribuição à Bolsa
francesa. Os banqueiros, financistas foram eternamente gratos pelo adjutório
napoleônico como directeur général do État francês. É verdade que “o manto
imperial sobre os ombros de Luís Bonaparte „ruiu‟ do topo da Coluna Vendôme”
tornando-se realidade prevista por Marx, deixando para trás tanto a monarquia
como o mito do “pai” e protetor dos camponeses. Mas, restou a herança política
para burguesia poder usar universalmente, tanto em forma como em conteúdo:
parlamentarismo e Bonapartismo como irmãos siameses da democracia
burguesa.
A partir
daquele período a frase se igualou ao conteúdo: no caso, Bonarpartismo é
sinônimo de NECESSIDADE das frações burguesas que, sendo substituídas
excepcionalmente, sempre que o condomínio PARLAMENTO-, sua forma de governo por
excelência, não consiga resolver diretamente seus interesses conflitantes, ou
quando outras classes ameaçarem a sua hegemonia. Ela, burguesia deve transferir
seu poder político direto, para outrem, em nome de assegurar seu poder
econômico.
Que fique
claro, Marx, assenta sua análise no conflito fundante entre a burguesia – com
suas frações – contra o proletariado, contudo, leva em consideração que outras
classes podem também dirigir momentaneamente o processo das lutas. Portanto, em
última instância, só as classes mais elementares da época moderna, o capital e
o trabalho, que convivem em permanente disputa, poderão superar os antagonismos
de classe. Para pequena-burguesia e o
campesinato, como classes intermediárias,
não resta outro caminho. Para alcançar a vitória definitiva precisa se
aliar a uma daquelas, ou subsumido ao capital, ou em aliança com proletariado
defender a evolução socialista.
PARTE II
1) O método de periodização: cada etapa é
periodizada de acordo com a presença das classes e de seus representantes no
cenário da disputa política, militar e ideológica (propaganda nos jornais).
Marx foge da concepção formal da história positivista muito em voga na sua
época. Não é o simples politicismo liberal, que pensa a política pela política
como mera sucessão de disputas legais, institucionais feitas por políticos
profissionais ou personagens em si; que determinam os rumos dos acontecimentos,
mas a correlação de força entre as classes. Percebe-se nitidamente esta
periodização quando Marx compara as duas revoluções, a de 1789 com a Revolução
de 1848. Ele textualmente afirmava, cada fase da tomada de poder pela burguesia
a partir de 1789, era marcada pelas classes avançadas, uma a uma era empurrada
para frente, fazendo avançar a revolução, substituindo aquelas que se
constituíam como obstáculos revolucionários, ou não conseguia cumprir este
papel; o inverso ocorreu na Revolução de 1848, pois suas fases caracterizaram-se
pelo recuo permanente na medida que as classes ou frações de classe mais
avançadas eram apunhaladas pelas costas para ceder lugar às mais atrasadas,
resultando em vitória, em vitória, da contra revolução. O Partido da Ordem
derrota o Partido Nacional, os republicanos puros e nacionalistas. Da vitória
sobre estes à derrota para os partidários de Bonaparte e, estes reles serviçais
do grande malandro, levam em uma liteira o AUTOCRATA para assentá-lo no trono
em 1852.
São as
ofensivas e defensivas que constituíam cada etapa do movimento. Não era uma
mera sucessão de fatos políticos, mas a luta concreta que determinava as fases
do período revolucionário;
Aqui o
fundamental é a TOTALIDADE: metodologicamente, Marx inclui todos os elementos
da realidade analisada: econômicos, políticos, militares e ideológicos para
apresentar a realidade concreta. Ele não se atém apenas a um elemento, o
econômico, por exemplo. Marx jamais se prendeu ao economicismo para fazer suas
análises, ele sempre se valeu desse elemento como fundante, um ponto de partida
ou chegada, porém sempre combinado com a totalidade do fenômeno em
análise.
2) Por extensão disto, a análise marxiana nega o
determinismo econômico, preservando a autonomia relativa de cada esfera dessa
totalidade: um exemplo disto é a fase em que burguesia financeira, industrial,
agrária e comercial se alheiam dos seus representantes no Parlamento para
preferir o Napoleãozinho, e com isto, manter seu poder econômico em detrimento
de perder o poder político direto. Luís Bonaparte, um desclassificado, sem
vínculos orgânicos com nenhuma das classes, vai ao final das contas governar em
nome do capital financeiro.
Metodologicamente quer dizer que nem sempre a política coincide com a
economia, ou de outra forma, os fatos econômicos imediatos nem sempre espelham
imediatamente a política. É um processo dialético em que as esferas internas
têm lógicas, muitas vezes, autônomas, passando por mediações concretas
diferentes, numa espécie de “curto-circuito”, onde uma nega a outra,
constituindo uma nova totalidade. Nosso
caso emblemático é o próprio Lula ou Léon Blum na França dos anos 1930 com a
Frente Popular. Ambos romperam com sua origem econômica para representar o
projeto burguês. Embora Lula tenha nascido proletário, assim como o Partido dos
trabalhadores, tornaram-se representantes de outra classe. O Próprio Marx e
Engels são originários da burguesia, mas seu vínculo orgânico desde a juventude
foi com o proletariado;
3) Marx rompe com o formalismo político liberal
abstrato de Montesquieu. Este em seu livro “Espírito das Leis” defende a
divisão dos poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário. Para Marx isto não passa de formalismo, pois,
desconsidera a luta de interesses entre as classes. O que de fato determina os
distintos regimes políticos (monarquia, republicano fascista, parlamentarista,
presidencialista...) não é a decisão formal dos cidadãos, ou legisladores,
através de leis formais, mas, a resultante dos conflitos internos entre as classes
para chegar ao PODER. O politicismo
liberal lança em seus debates apologéticos uma grande besteira: o equilíbrio
entre os três poderes. Isto é uma quimera, pois sempre há uma assimetria entre
eles, sempre um poder é mais forte do que o outro. Durante a democracia
parlamentar, a Assembleia legislativa liderada pelo Partido da Ordem exerceu o
poder sobre o Executivo. Com a mudança das correlações de força, o Executivo,
apoiado pela burguesia de fora do Parlamento, viu cair no seu colo o PODER e
fechar a assembleia de um dia para o outro (o 2 de dezembro de 1851).
4) a presença e liderança das diversas classes
nas lutas, caso de junho de
1848 ou junho de 1849 em que a
pequena-burguesia liderou aqueles
levantes, e depois, foi derrotada
pela aliança burguesa.
5) Na questão do campesinato apresentada no
livro, Marx destaca mais um elemento metodológico: a classe em si e a classe
para si. O campesinato em função do seu modo de produção, disperso em unidades
produtivas, subsumidas ao grande capital, existe enquanto classe em si, porém
essas próprias condições obliteram uma tomada de consciência de pertencimento a
uma classe, seu mundo é individual, sua crença é metafísica em um deus, um
santo, ou um messias. Ela só entra em luta mediada com outras classes. Foi contando com o mito do tio que Luís
Bonaparte contou seus sete milhões de votos: o campesinato acreditou que o
Napoleãozinho iria repetir as ações do Napoleãozão, não só doando terras, mas
perdoando suas dívidas. Marx diz que o campesinato é como um “saco de batatas”,
seu conteúdo se movimenta de acordo com a largura e cumprimento do saco, se o
saco estiver fechado, amarrado, as batatas não se esparramam, ficam presas à
unidade dada pelo saco, sem independência de classe. Até sua grande glória do campesinato em
participar do exército francês, ser cidadão do mundo, espalhar a revolução por
toda Europa, foi solapada pelo Salteador. Em lugar de convocar os camponeses, o
chief executive passou a alistar arrivistas, ladrões, vigaristas pertencentes
ao lumpesinato, membros da Sociedade 10 de Dezembro;
6) A queda do mito Napoleônico: Marx lança,
através de uma frase, uma ilação que depois se confirmará em 1869, quando da
queda do Segundo Império. A frase é: “O culto do Manto Sagrado de Treves – uma
espécie de relíquia sagrada para os católicos reacionários-, ele repete em
Paris sob a forma do culto do manto imperial de Napoleão. Mas, quando o manto
imperial cair finalmente sobre os ombros de Luís Bonaparte, a estátua de bronze
de Napoleão ruirá do topo da Coluna Vendôme.”. Aqui Marx quis dizer que o
Napoleãozinho ao assumir o poder terá que necessariamente governar para a
burguesia, tendo à frente a aristocracia financeira, a qual, entre outras
coisas, só pode existir às expensas do endividamento do Estado, que vive das
expensas de toda a sociedade francesa, particularmente do proletariado e do
campesinato com seus impostos e hipotecas a pagar. Esta leitura só foi possível a Marx graças ao
domínio do método que ele juntamente com Engels, elaboraram. Conclusão: só resta ao campesinato a aliança
com o proletariado. A foice e o martelo!
7) O BONARBATISMO marxiano não parte do
pressuposto do equilíbrio entre as duas classes fundamentais na disputa pelo
Estado. O governo bonapartista é na verdade a incapacidade da burguesia em
manter esse “equilíbrio”. Após maio de 1850, ficou claro para a burguesia de
dentro do Parlamento, que não só não conseguiria chegar a um acordo entre a
forma de governo, monarquia, república ou ditadura de Bonaparte, mas a própria
inviabilidade do seu domínio direto por meio da República Parlamentar. Sua
existência implicaria no sufrágio universal e o retorno para dentro do
parlamento de representantes do proletariado e da pequena burguesia. Isto a
colocou em completa contradição com República: manter-se viva era a mesma coisa
de ter sobre sua cabeça a espada de Dâmocles, ainda que invisível, sob a forma
de um eterno fantasma vermelho. A burguesia de fora do Parlamento tinha outra
saída: matar a Assembleia para viver um executivo hipertrofiado, capaz de
defender o interesse econômico burguês. Esta situação não poderia ficar
indefinida, como não ficou. Galvanizando as disputas internas entre as frações
parlamentares, acirrando contra ela as tentativas de querer controlar o
Exército; jogava barganhando cinicamente dinheiro para seus projetos junto à “sociedade
secreta 10 de Dezembro”, desmoralizando o parlamento que se viu obrigado fazer
um acordo para compensar a diminuição da lista de votantes em três milhões; ou
mesmo quando o vigarista desafiava esse mesmo “condomínio” agindo às claras,
fraudando a loteria. O apetite de Luís Bonaparte aguçava cada vez mais e os
próprios capitalistas, práticos por natureza, não se preocupavam com querelas
morais denunciada por um parlamento enfraquecido. Já de algum tempo sua
caminhada da Avenue des ChampsÉliysées até Versalhes estava pavimentada com
“limas douradas” fornecidas pela burguesia fora do Parlamento.
8) A
sustentação (base material e política) do Bonapartismo: campesinato,
lumpesinato e uma grande burocracia estatal autônoma. Meio milhão de parasitas
e mais meio milhão no exército, perante uma população de 36 milhões de
franceses, garantia o funcionamento do governo de Luís Bonaparte. A
centralização do Estado, iniciada desde os tempos do absolutismo, com um Estado
forte, continuou sendo uma condição sene
qua non para submeter a massa de trabalhadores e camponeses. Com esta
experiência, a burguesia aprendeu que não é necessário estar na à frente da
administração política, ela pode contar uma burocracia, com políticos
profissionais, terceirizando o cuidar dos seus negócios no parlamento. São os
políticos profissionais, uma espécie de staff administrativo, assessorado por
milhões de funcionário, os quais Weber denominava de intelligentsia.
Jomar Souza, março de 201
Obrigada por Compartilhar conosco tão precioso texto,Elói!
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