Dona Maria
morreu numa tarde em que as flores da primavera se abriam no imenso jardim das
terras que ela herdara de seus antepassados e que se transformara na Casa de mãe
Maria, alcunha que surgiu um dia numa conversa qualquer, entre seus conhecidos,
e que nunca mais saiu da boca do povo circunvizinho.
Filha única,
mas rodeada de tias de cujos pais ouviram muitas histórias de senzalas, de
engenhos, de Zumbi, ficou viúva antes dos quarenta anos e, não tendo filhos,
pôs-se a cuidar dos moleques que viviam soltos nas ruas, tratando-os como se
fossem seus. Tinha uma santa mão para curar bicheiras, fazia remédios para
feridas que não cicatrizavam e temperava uma cachaça que arrastava gente de
longe, pelo gosto e pelo cheiro. Até o Coronel Botelho, em cuja fazenda passara
uma noite o presidente, vinha, vez ou outra, beber sentado à mesa dela, todo
redondo com a barriga maior que o jumento que o arrastava por aquelas ruas
tortuosas, e sempre fazendo muito barulho com suas risadas que imitavam trovões.
Dona Maria
gostava da farra, isto é, da boa risada, da casa cheia, de uma boa prosa; na
verdade tinha medo e até horror à casa vazia; não tinha o hábito da reflexão
solitária e, quando não conversava, tocava a cantar. Gostava das cantigas
antigas, das músicas festivas e trocava tudo por uma patuscada, regada à comida
farta.
Quando suas
tias foram morrendo e ela ficando mais velha, o antigo casarão de seus pais já
era frequentado por uma vasta gente dos arredores e por outros que, vindo de
longe, passavam ali um tempo a ouvir histórias, a receber rezas, remédios para
diversos males e até prestar serviços naquelas terras.
No dia em que
havia morte, ela chamava a “Turma do a arrasta-arrasta” e mandava tocar música
noite afora; a não ser que fosse morte trágica, como foi a morte do prefeito
Totonho, numa emboscada feia, dia em que proibiu a música e apenas mandou
distribuir cachaça, dizendo:
- Também não é
preciso tristeza.
Sua morte foi
um assombro em toda a região de Serras Peraltas. De todos os lados se viam gentes
povoando as estradas e se cumprimentando de chapéu na mão.
-Vamos ver mãe
Maria!
-Vamos que é
uma despedida tremenda!
Um outro, que
chegava a cavalo, vendo as flores que desabrochavam ao longe em uma planície
extensa, disse, aparelhando-se aos outros no caminho:
-É a primavera
dos sonhos, morre o corpo e liberta a alma.
Dona Maria tinha
por essa época oitenta e dois anos e uma alegria de menina festeira; amiga da
ordem e da paz, mas inimiga de silêncio comprido: “Isso desagua em tristeza”,
dizia ela quando ninguém conversava, e depois completava: “tristeza não manda
saúde”.
A multidões
que chegavam de longe, no entanto, se surpreendiam. Não encontravam ali um
velório ou qualquer aspecto que lembrasse a morte. Encontravam uma algazarra
única. Uma festa dos diabos que durou três dias, sem contar as noites, que se
acabou, não por falta de tempo, mas, porque se acabaram antes a comida e a
bebida, que era com que reanimavam a bagunça.
Ao fim de
tudo, o delegado veio ver como ficara a coisa. Muita gente ainda dormia
esparramado ao quintal, sob o sol já escaldante; uns quase sem roupa, outros
enrolados às palhas de milhos, assados ao longo da festança. Por todo lado se
viam ossos de animais e penas de galinha, os barris de cachaça estavam deitados,
jogados a um canto. Sob as ordens gritadas pelo delegado, começaram a recolher
a sujeira; mesmo cambaleando não houve quem desobedecesse a autoridade.
Logo depois
chegou o prefeito no seu velho jipe sujo de lama. Deu umas voltas com o
delegado e depois mandou lacrar a propriedade. Uma vez que a defunta não tinha
herdeiros, tudo aquilo agora passava à propriedade do Estado.
-Que cada um faça
o favor de procurar seu rumo! - sentenciou o prefeito.
Elói Alves
Bendita Maria!!! Fará muita falta aos seus beneficários, agora sem rumo!
ResponderExcluirExcelente conto amigo, que de novo me fez reviver a infância onde a negra benzedeira de nome Maria dizia, enquanto agitava o galho de arruda...Foi pela sua formosura? Deus da virgem Maria, tira esse mal olhado e manda pro mar sagrado onde o galo n~çao canta, cachorro não late, boi não berra, cavalo não rincha, nas ondas do mar, com as três pessoas da santíssima trindade; Deus Pai, Deus filho "ESPRITO SANTO" amém! (dito assim errado) tínhamos total confiança em sua reza!
Adorável comentário, amiga Ira; como nosso mundo perde de encanto quando os indivíduos tornam-se frágeis quando retiram deles esse conteúdo de magia, de sonho, de espontaneidade... bjos grato, amiga, por sua preciosa leitura e por seu comentário.
ExcluirLendo e pensando comigo...
ResponderExcluir"Como são as coisas. A pessoa entrega sua vida ao próximo, mas quando morre o Governo, que na verdade tem a responsabilidade pelo povo, ao invés de cuidar de quem fica, tira-lhe o pouco que resta...
Maria...Vá com Deus e não olhe para trás, mãe velha, que é para não chorar pelos seus que ficam sós e sem atendimento...
Como sempre, Beth, muita sensibilidade e competência analítica em seus comentários; bjos gratos
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