Estava
à morte quando mandou que chamassem o filho. Havia anos que
não se viam. Quando se separou da mulher, o menino contava dez
anos. Veio vê-lo umas vezes, ainda pequeno, para sumir logo que
crescera. Depois voltou uma vez, já doutor e pai, quando lhe
trouxe o neto ao colo e em fraldas.
-Tem
visita, seu Inácio- disse a enfermeira que passava para lhe
dar o remédio.
Olharam-se
um tempo sem trocar palavras. O silêncio do quarto, o branco
dos lençóis, o doente levemente esticado que lhe
lançava um olhar vagaroso, encheram o local de uma reverência
ritual e pia. O que chegava manteve-se com as mãos atadas às
costas, o paciente conservou-se imóvel e sereno. Olharam-se
assim por um tempo curto e eterno, de que só um relógio
imaterial e sublime poderia contar as batidas.
O
doente soltou um débil gemido ao tentar erguer-se.
-Não
se esforce.
-Vou
me sentar.
Ao
pé da cama havia a uma cadeira. O visitante a arrumou
quietamente perto de si e sentou-se. Os olhares eram curtos e
silenciosos. Apenas o correr do soro, posto ao lado da cama, quebrava
a monotonia. Acima da cabeceira, na parede branca, ia um Cristo de
olhos azuis, tão monótono como tudo mais que compunha
aquele quarto de moribundo.
-Sabe
que não minto, Otávio- disse o homem depois de olhar um
tempo para o filho. Não lhe chamei aqui para uma despedida nem
para desculpas, mesmo sabendo que esta é a minha hora. Mas
tenho uma coisa que só posso dizer a ti, e não
podia revelar se ainda tivesse poder sobre essa carcaça fria.
-Não
diga assim, ainda está forte.
-Não
estou nem posso enganar-me. Há dois anos que as máquinas
lavam meu sangue. Vi aqui vários homens fortes irem secando.
Um dia você vê não aparecer um, noutro dia dá
falta de outro. Depois de um tempo, a gente se vê como eu agora
estou, sem mandar mais nos meus músculos. Tenho resistido até
aqui, mas não tenho mais força. O que me resta, quero
gastar num pedido último que é também uma
confissão.
-Diga,
diga!- disse o outro, num tom de espera e sede do que quer que fosse que viesse.
-Sei
que pensa que nunca gostei de ti, de tua mãe, que não
lhe dei amor. Agi sempre como um bruto, longe de casa, negociando
dentro do balcão de um bar, cobrando os devedores safados com
a peixeira na cinta e revolver na bota e lidando com bêbados
impertinentes. O que não dei, eu também não
tinha.
-Não
tenho queixas...
-Bem,
e nem é preciso lhe dizer o que sabe. O que preciso contar, e
que não disse a ninguém, é que você tem um
irmão que não conhece.
Neste
momento a enfermeira retornou ao quarto e o homem suspendeu a
narrativa. Engoliu outro comprimido e tomou a água, olhando
vagamente para as pontas dos pés cujo formato aparecia sob o
lençol branco e terminava mirando um vazio que se estendia ao
longe, como se olhasse o infinito.
O
silêncio se espalhava por tudo, absoluto, até que uns
tamancos brancos soaram à porta, retirando os olhos do homem
das profundezas de um mundo vago, para logo desaparecer de novo pelo
corredor imenso sob uma luz rala.
-Nem
tudo posso contar, - retomou vagarosamente o doente - tem muita coisa
que levarei comigo. Mas o menino só tem agora a tu nesse
mundo. A mãe anda perdida pela vida, nos lugares que a gente
se conheceu, e o pequeno está no sertão nas mãos
da avó já quase morta. Tenho lhe mandado sempre o
sustento, mas tudo isso até hoje em segredo. Tenho juntado o
bastante, para muitas vidas, mas o menino pede também dois
olhos que lhe vejam crescer nesse mundo sem fim.
A
médica entrou com alguns papeis e aparelhos. Olhou o paciente,
que se calara, e o ajeitou sobre a cama. Em seguida, verificou alguns dados e se
retirou. O doente fechou os olhos e adormeceu. No dia seguinte,
deu-se a noticia de sua morte.
Mais
de um ano havia se passado quando Otávio, com a camisa branca
rasgada pelos matos afoitos, com uma foto na mão, entrou pelo
sertão da Bahia, indo achar trabalhando sob sol escaldante,
com uma enorme foice nas mãos, no meio do canavial, um menino
de dez anos em quem rapidamente reconheceu seu irmão.
De Leonice Rocha (pelo facebook) "Que conto mais lindo,meu amigo ,de fato ninguém dá aquilo que não tem,como vai dar carinho e amor se não recebe,mas independente disso,embora em seu leito de morte ainda conseguiu ensinar ao filho à dar amor e atenção a quem precisava....o irmão,parabens Eloi pelo comovente conto."
ResponderExcluirDe Marilene Ribeiro (pelo facebook) "Mesmo no leito de morte ,vivendo seus últimos momentos não intentou com sua confissão vir a ser admirado por tal ato ou temer uma repreensão. Mostrou uma atitude nobre, humilde e de amor,mesmo sendo este amor vivenciado de forma diferente mas com resultado surpreendente.Adorável Eloi".
ResponderExcluirTão admirável o poder de sua narrativa com conteúdo forte que toca profundamente. Queria 500 páginas de um conto seu para deleite!
ResponderExcluirMuitíssimo grato pela carinhosa leitura e por seu precioso comentário, Ira! bjos gratos, amiga!
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