Elói Alves
O
belíssimo livro do poeta Guga Dorea, Olhares
silenciosos- PoÉtica da Diferença, que agora se faz chegar às mãos do
leitor, é, antes de tudo, um estandarte que se ergue como símbolo de uma
sensibilidade poética que sacraliza o olhar humanístico, um olhar que, no dizer
do poeta “percorre os múltiplos labirintos” e “difíceis travessias” para
ressignificar a condição humana, desnudando-a naquilo que a insensibilidade de
nosso tempo petrificou.
O
poeta vê como caos originário o vazio; não há aí, ainda, como no
Gênises, um fiat lux, a palavra estabilizadora que ordena, que organiza
e ilumina; há, via reversa, o medo, ou “os medos”, que, afirma, “podem anteceder
aos atos”; ante o vazio, o olhar silencioso observa, enquanto o coração
palpita. Essa palpitação, sob um olhar espectador, talvez gélido, dá-se às
desconexões “rodeadas pela liquidez da existência desumana”, num perfeito diálogo
de sua poesia com a modernidade líquida que se observa na filosofia
de Zygmunt Bauman.
O
medo, o vazio e o silêncio talvez suponham os “homens egóicos”, expressão que
aparece no poema PULSAÇÔES. Aí,
objetivamente, surge a ideia de progresso, diante da qual há “vidas
perdidas em uma ardente amargura” e a injustiça que se esparrama. Semelhante
constatação encontra-se em O MUNDO CHORA, com “Rostos colados em injustiça”. Nesse
passo, o poeta enxerga uma “humanização disfarçada” e, “no asfalto nu da
realidade” a ameaça aparece como “vírus humano”. As amarguras e injustiças que
figuram ali talvez caibam, em exata medida, na cruenta cama de “Procustro”,
mito grego cujo ensino o autor retoma, e o faz muito a propósito da formatação
de nossa racionalidade quantas vezes insana.
No
entanto, mesmo diante da apatia extensa em que mergulham os sentidos, o poeta
não restringe seu olhar a um só ângulo, pois o atravessar sereno e vigilante de
sua análise exige contrapontos. Assim, aponta
para aquele que “Desbloqueia filtros que bloqueiam o enxergar/ Olha e segue
perguntando/ São olhos caminhando livre pelo ar”. Esse mesmo tom esperançoso
aparece em “inclusão, onde a alteridade permite “olhar as cores e as bordas da
multiplicidade” e ainda a ternura em “Receber com abraços sentidos e afetos/percorrer
os múltiplos labirintos/jorram belezas e desejos”, e seu planalto poético surge
em “alcançar a potência/ e o lirismo das montanhas” e no entusiasmo em que “O
riso ressurge”, em O fechar os olhos.
Bem
sugestivo é harmonia poética que se apresenta nos poemas, o trabalho artístico
se constrói em forma livre e versos assimétricos, sem nos privar, todavia, de sua
embalante musicalidade, como se dá na construção de Nhanderu ou na cadência de
“Vai e vem do ser”, em que a disposição dos versos breves se alia à sonoridade sugestiva
de algumas consoantes aliterantes;
A
isso se soma a sinestesia, que levemente vai sugerindo sensações simultâneas,
as quais se notam, num olhar panorâmico e espaçoso, em “Ver a si mesmo e o
outro”, com “fotografar...”/ “com ouvidos aguçados”/”abraços...”/ e “olhares
que se bifurcam”, que reaparece em “enigmático olfato/ Da visão...”, no poema
Fechar os olhos, além do aspecto antitético de que se pode depreender de “O
dentro e o fora”, substantivados pela construção frásica do autor.
Fundamental
característica que no presente livro se pode notar é a importância marcadamente
humanística a que se têm alçado os poetas e literatos desde as mais longínquas
eras como expoentes dos direitos humanos em todas as épocas, evocando a justiça
na sua acepção mais profunda e menos institucional ou formal, em labor de
resistência e emancipação, que neste livro aparece em seus “gritos de liberdade”.
Os
direitos essenciais inerentes a toda pessoa humana, constituintes do núcleo
substancial de sua dignidade, estão amplamente presentes nas obras literárias, que com frequência retratam a aspiração das
personagens a uma vida livre de opressão; tais direitos, sejam conceituados
como Direito natural, pertencentes universalmente à condição humana como tal,
independentes do legislador, ou como direito positivo, constitucionalizados
tardiamente pelos estados ocidentais, são invocados toda vez que o poeta
retrata os dramas da existência de um ser sob opressão ou sua impotência ante
condições que lhe provocam angústia.
De fato, agindo contra a corrente, poetas e escritores,
desde Homero, ou ainda antes, erguem seu
grito de socorro e alerta, grito tantas vezes sufocado pelo poder dos mais
fortes; poder ora encarnado por grupos organizados, institucionalizados ou
bandos armados, alheios ou tolerados pela força oficial, ora pelo próprio poder
estatal por cuja diminuição os direitos fundamentais lutam diariamente, como
garantia da preservação de um mínimo razoável à existência da vida humana,
sobretudo em uma época de banalização do mal, como expressou Hannah
Arendt.
Para
Sartre, o ofício do escritor é desvendar, isto é, iluminar as
consciências; já o poeta, no dizer de Drummond, luta com palavras “mal
rompe a manhã”. Mas o poeta e o escritor não são super-heróis. Dessa “tarefa
de tirar vendas, o escritor não pode dar conta apenas com o recurso de suas
palavras, com o alcance limitado de sua escrita. Porque ele trabalha sozinho
diante de um mundo complexo que se refaz constantemente, que não cessa de
produzir engodo, capaz de petrificar as mentes antes de sua chegada” (citação de
O olhar de lanceta, p. 39).
O
poeta tem a consciência disso, isto é, de que “É difícil viver poeticamente”.
Mas afirma em seguida: “a poesia está em nós/ entre o imaginário/ E o real/
Entre corpos navegantes/ Jorrando tempos/ Inalcançáveis”. Por fim, Guga Dorea nos
convida a “Olhar além do invisível” e a exercitar a sensibilidade: “São
visionários os que sentem/ A interioridade complexa/ Sentir os ares externos/ Que
te atravessam o corpo mutante/ Invisibilidades vivas/ Metamorfoses da vida”.
Esse convite, para que se agucem os sentidos, iniciando-se já pelo olhar,
parece-me o motor maior, a força iluminadora de sua obra.
A
todos, ótima leitura.
Elói Alves, advogado e professor, formado em Letras pela
Universidade de São Paulo-USP e em Direito pela FMU, autor, entre outros, dos
livros O olhar de lanceta: ensaios
críticos sobre literatura e sociedade, do romance As pílulas do santo Cristo,
de Sob um céu cinzento (poesia), Histórias do tio Gerbúlio (pela
Ed. Essencial),
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