sexta-feira, 22 de março de 2013

ALÉM DO LIMITE: tortura e sadismo em "Escaras", de Edu Moreira

(Escrevi este ensaio a convite do escritor Edu Moreira, para Escaras, seu novo livro, cujo prefácio é de LIndolfo Nascimento)





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         Eis-nos diante de um novo livro de Edu Moreira: Escaras. Nele, sua pena esquiva-se do sublime e do belo e escorrega, via reversa, pelo tortuoso e pelo grotesco, sangrando, letra a letra, os horrores de uma sociedade dilacerada por turbilhões de sensações negativas, onde, em sua representação, a tortura alça-se a graus terríveis de racionalização doentia, onde as cores de uma beleza ternamente humana se torna opaca e monótona.
          Ao iniciar a leitura percebemos um leve incômodo que perde-se na caracterização e em sua configuração apenas iniciais e que se remetem a infinitas possibilidades entre os desajustes sociais e psíquicos dos homens de nosso tempo. Logo a coceira amplia-se e, num átimo, forma-se ante os olhos do leitor essa chaga horripilante – escara - difícil de fixar sem arredar alguma vez os olhos.

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          Há algum tempo, notadamente nos meandros da literatura moderna, as narrativas mais agudas têm se declinado a buscar no cotiano algo menos momentâneo e fugaz da vida dos homens, que aponte para o essencial em sua existência. Neste sentido, elas desviaram-se das grandiosidades dos heróis homéricos, do aspecto épico e elevado daqueles heróis antigos, superiores a nós, como lemos nas poéticas clássicas, para penetrar na baixeza de seus homens, em sua dignidade simples, menos nos elementos soltos de uma heroicidade eventual ou (e) forjada e mais na cotidianidade das fraquezas e fracassos humanos – sejam quais forem suas estaturas e classes sociais. Já em Cervantes temos um Quixote andarilho e aventureiro e, por aqui, um Brás Cubas rico materialmente, mas completamente desprovido de espírito, cuja consciência tenaz e corrosiva só lhe aparece nas memórias de um “defunto autor”, isto é, só lhe é possível com a morte.

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         Mas “o sentimento do mundo” em Edu - parafraseando Drummond – não se associa às sátiras de Cervantes e de Machado de Assis. O fidalgo ensandecido e o burguês vazio compõem estilos que compreendem a crítica pelo viés do riso, da ironia na própria estrutura de seu realismo. Em Escaras, a essência do real não se nos chega por meio de um riso contestador nem se utiliza da desconstrução pelo humor. A narrativa pede nervos de aço ao leitor a cada passo em que se descortina, ao mesmo tempo em que este não quer adiá-la, de olhos atentos na decomposição contínua de um morto-vivo. Em Escaras, mesmo o lado poético de Moreira aparece enxuto e completamente alheio a quaisquer aspectos que se remetam ao piegas e a sentimentalidades medianas.
         A junção do verso e da prosa com a qual o autor tece sua Libélula pré-histórica, a segunda narrativa que compõe o livro, remete-nos à antiga sátira menipeia, com seu gênero híbrido, que se originou com os antigos gregos, com Luciano de Samósata, antecedido por Menipo, e foi depois à Roma de Juvenal e de Sêneca, com sua monumental Apocoloquintose do divino Cláudio, cujos versos, tão perfeitamente metrificados, com seus hexâmetros datílicos, jâmbicos e metros líricos, mesclam-se à sua prosa hibridamente jocosa e, acidamente, crítica, e dos quais se formou a conhecida tradição luciânica, com satiristas da grandeza de um Erasmo, de um Voltaire de um Suift e entre os quais se inclui o nosso autor de Memórias póstumas de Brás Cucas e do Alienista.
        Mas em Edu, o tom, a perspectiva desviam-se por um caminho reverso do viés corrosivo daqueles antigos, sem o seu humor satírico e cáustico, passando distante do riso pedagógico tão presente nas sátiras romanas. Aliás, em Edu acha-se menos o humor, menos o elemento cômico disciplinador, e muito mais o trágico, por assim dizer, naturalizado em seu realismo.


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         Na segunda parte do livro, na narrativa da “Libélula...”, surge um EU que se debate, exercendo o seu jus sperniandi. Este Eu se afigura apenas por seu estado de ânimo, mas sem vida plena, sem outra perspectiva senão de expor-se flagelado e fragmentariamente diante de um moribundo que não pode julgá-lo nem fraternizar-se com estes restos de vida impotente, expelidos como vômito.
       Na incontida efervescência da enorme cidade, a subjetividade também se arrefece e se apaga, em meio a massa que se forma, grossa e grotesca, compondo um quadro terrível com o concreto insensível e soberano que encurta todos os horizontes, numa mesma paralisia que engloba a montoeira infinita de carros aprisionados nas ruas irrespiráveis, onde os homens permanecem enlatados. A própria cidade, o locus existencial dos citadinos, é já uma grande lata onde a carga de homens se ajeita, tomando uma forma humanamente deformada.

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Suas personagens também são sintéticas em seus caracteres humanos. A densidade, quando se nos mostra, está na desumanização verificada na barbárie, tantas vezes reiterada na história dos homens, em sua luta pela conquista e manutenção do poder – como tão bem mostrou Maquiavel – e que se acentuou tão gravemente na “Era dos extremos”, termo cunhado pelo extraordinário historiador Eric Hobsbawm, que há pouco nos deixou.
        No entanto, essas personagens não se filiam às fileiras dos tipos, não são caricatas, tão-pouco se lhes podem impingir a falta de atributos de um títere. O que lhes falta é a diversidade positiva de uma vida plenamente humana, visto que são existências marcadas e afetadas por uma época, pertencentes a um espaço, onde essas virtudes rareiam, deixando explodir o vício, penetrando a negatividade na própria estrutura da vida, onde a existência despe-se do sublime, do simbólico, para incorporar a insipidez e naturalizar o horror, atenuando-o, todavia, na teoria e nas incursões do Direito, acomodando-o na organização social.

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        Não é da totalidade que Edu tenta dar conta. Fixa-se em um punhado restrito e estrito de personagens moribundas, que estão à margem das benesses do poder econômico, da acumulação do capital, da vida exitosa. Ilumina-as, deixando-as minguar diante de nossos olhos, até que sequem suas últimas forças, explodindo no ar como bexigas secas ou misturando-se à terra como estrume pisado.
         O autor filia-se assim a linhagem dos “historiadores da angústia”, de que nos fala Alfredo Bosi em seu livro “Céu, inferno”. O escritor desloca-se da pessoa gentil e meiga, de conversa amena, quando nos expõe a mais vil degradação humana, a contemplação chocante de carne humana desmanchando-se sob um processo organizado de tortura física e psicológica que prepara um espetáculo de prazer insano, num evidente comportamento em que domina o sadismo.
        Difícil é manter o foco, mesmo para um leitor cuja história se construiu na experiência do sofrimento e conhecedor da literatura humanista. A pausa para respiração se faz necessária e, quem sabe, uma suspensão momentânea da leitura.
          É exposta a situação-limite de uma opressão que além de rasgar a carne quer humilhar a alma até que se produza a indigência, onde o humano se extingue, deixando de ser, para dar origem a uma massa disforme que se debate como bicho decapitado que ainda se mexe sob olhos indiferentes que formam uma ordem social estupida em que o valor e a visibilidade ligam-se apenas ao ter e ao possuir, ao poder da moeda que tudo rebaixa e coisifica como mercadoria.

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        Foucault, em Vigiar e punir, organizou um importante documento que forma a história do suplício, dos “rituais de execução capital” promovido pelo Estado em países como França e Inglaterra que mostra o elevado grau de elaboração racional e técnica na promoção do “ato de punir”.
         A velha forca foi substituída pela guilhotina em 1792, às portas da revolução, em que seu uso foi intensificado. Ela foi tida, como nos lembra Foucault, “a mecânica adequada a tais princípios (matar diminuindo o sofrimento). A morte é então reduzida a um acontecimento visível, mas instantâneo. Entre a lei, ou aqueles que a executam, e o corpo do criminoso, o contacto é reduzido a duração de um raio. Já não ocorrem as afrontas físicas; o carrasco só tem que se comportar como um relojoeiro meticuloso. (...) Quase sem tocar o corpo, a guilhotina suprime a vida, tal como a prisão suprime a liberdade, ou uma multa tira os bens”.
         A inserção de Escaras no tempo histórico torna-se mais evidente quando a comparamos com estudos como os referidos acima. As elaboradas máquinas de matar, construídas com alto grau de racionalização, aparecem na narrativa de Edu como espelho de fatos históricos medievais e contemporâneos.
         O uso de máquinas de tortura aperfeiçoadas pelo personagem parricida de Escaras, análogas às utilizadas pela Inquisição religiosa medieval e pelo Estado brasileiro nas torturas e assassinatos ocorridos durante a ditadura militar de 1964, põe a nu as deficiências e limitações da religião, da ciência e do Estado e mostra exatamente essa negatividade da razão, essa profunda contradição da sociedade na sua relação com o valor da vida e de seu compromisso com as garantias dos direitos fundamentais e inalienáveis da pessoa humana, direitos que lhe são essenciais e, por isso, intocáveis, embora sejam constantemente tocados.

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         Edu Moreira não é exatamente um inovador no campo temático. Sua obra não se faz sem a observação. É pois um ficcionista ligado à realidade histórica. Sua literatura associa-se tematicamente à qüestão das patologias sociais e psíquicas, como a loucura, tão presente na literatura ocidental, de que faz parte o que por aqui se produz.
        Machado de Assis deu-nos uma porção rica do tema em sua produção, em que O Alienista é talvez sua obra máxima no espaço dado ao tratamento literário reservado à psiquiatria. Adjacente a este, ou aí mesmo, está o sadismo, um caro tema explorado por Machado e que figura densamente em Escaras.
         O sadismo apareceu originariamente nas novelas do Marquês de Sade, na transição do século dezoito para o dezenove. Daí a origem do termo cunhado. Em suas narrativas, o prazer estava, reiteradamente, ligado à prática de relações sexuais violentas. Vários patologistas inclinaram-se aos estudos de casos de sadismo desde que surgiram aquelas novelas e o termo passou, depois, a ser aplicado a quaisquer atos em que se obtém o prazer através da dor e sofrimento do outro.
          Um caso que parece muito óbvio ao leitor está no conto A causa secreta, de Machado de Assis, publicado 1885. Fortunato contemplava a dor alheia com “um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, como nos diz o narrador do conto”. No organizado e terrível modo que elaborou para matar o rato do conto, esse personagem machadiano não sentia “Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética”.
       Ainda em Machado achamos o coronel de “O enfermeiro”, conto publicado em A gazeta de notícias, em 1884. O coronel, que “padecia de aneurisma, de reumatismo e de três ou quatro afecções menores”, não parava com enfermeiros: “a dois deles quebrou a cara” e, além disso, “era também mau, deleitava-se com a dor e a humilhação dos outros”. Temos, por aí, como em Fortunato, a figura completa de um sádico.
        Em Escaras dá-se exatamente a aproximação do prazer estético, das artes visuais, ao prazer advindo da tortura do “homem-alce”. No entanto, aqui não nos vemos diante de um rato decepado ou de um doente, cujas moléstias potencializam a má educação e o temperamento agressivo, mas que não conduzem ao crime premeditado.
        Embora evidente uma frieza racional e o prazer explícito no ato do flagelo do animal por Fortunato, difícil de presenciar, trata-se ainda de um rato, um bicho que nos causa nojo, um roedor próprio dos esgotos que nos traz doenças e que, desde cedo, elegemos como inimigo de nossa espécie e para quem a indústria produz toda espécie de produto prontamente letal e que utilizamos sem peso na consciência – embora também a indústria produza toda espécie de armas perniciosas para os humanos – humanoratizados - inclusive para sua destruição em massa, e cujas conseqüências, ainda que os exterminem, proliferam-se ainda com a destruição contínua da natureza.

 
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        Escaras mostra-nos algo muito mais complexo do ponto de vista da insanidade psíquica e social. A racionalização dos meios de tortura humana alça-se a níveis que superam atos de violência que atribuímos normalmente à maldade própria dos desvios de caráter, ao temperamento violento e a agressões praticadas sem prévia intenção.
        Trata-se de um parricídio, mas não súbito. Aqui vemos o assassinato do próprio pai por meio cruel de uma insuportável tortura, gradual e lenta. Crime agravado pela exploração comercial de seu ato, o que amplia ainda mais a já inconcebível vilania, que se consuma no interior de uma organização criminosa complexa e encadeada cujo fim é o lucro financeiro.
         Edu é, pois um autor consciente do tempo histórico. Sua obra reflete os homens que estão a sua volta. O autor não atenua a realidade de sua época, capta-a no instante preciso em que escreve, sem, no entanto, perder a conexão com aquilo que se produziu anteriormente, no campo literário, cultural e histórico: a história dos homens precedentes e sua representação artística, mas com o olhar fixo na densidade específica da barbárie de seus dias que quer reproduzir em seu texto. Escaras é, portanto, um efetivo retrato documental de seu tempo, da sociedade de sua época, enfim, de seus homens com toda a sua insanidade.
Elói Alves
 



Leia Prefácio do romance "As pílulas do Santo Cristo" de Elói Alves
Primeito capítulo:
Segundo Capítulo:






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