(Escrevi este ensaio a convite do escritor Edu Moreira, para Escaras, seu novo livro, cujo prefácio é de LIndolfo Nascimento)
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Eis-nos diante de um novo livro de Edu Moreira: Escaras. Nele, sua pena esquiva-se do sublime e do belo e escorrega, via reversa, pelo tortuoso e pelo grotesco, sangrando, letra a letra, os horrores de uma sociedade dilacerada por turbilhões de sensações negativas, onde, em sua representação, a tortura alça-se a graus terríveis de racionalização doentia, onde as cores de uma beleza ternamente humana se torna opaca e monótona.
Ao
iniciar a leitura percebemos um leve incômodo que perde-se na
caracterização e em sua configuração
apenas iniciais e que se remetem a infinitas possibilidades entre os
desajustes sociais e psíquicos dos homens de nosso tempo. Logo
a coceira amplia-se e, num átimo, forma-se ante os olhos do
leitor essa chaga horripilante – escara - difícil de
fixar sem arredar alguma vez os olhos.
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Há
algum tempo, notadamente nos meandros da literatura moderna, as
narrativas mais agudas têm se declinado a buscar no cotiano
algo menos momentâneo e fugaz da vida dos homens, que aponte
para o essencial em sua existência. Neste sentido, elas
desviaram-se das grandiosidades dos heróis homéricos,
do aspecto épico e elevado daqueles heróis antigos,
superiores a nós, como lemos nas poéticas clássicas,
para penetrar na baixeza de seus homens, em sua dignidade simples,
menos nos elementos soltos de uma heroicidade eventual ou (e)
forjada e mais na cotidianidade das fraquezas e fracassos humanos –
sejam quais forem suas estaturas e classes sociais. Já em
Cervantes temos um Quixote andarilho e aventureiro e, por aqui, um
Brás Cubas rico materialmente, mas completamente desprovido de
espírito, cuja consciência tenaz e corrosiva só
lhe aparece nas memórias de um “defunto autor”, isto é,
só lhe é possível com a morte.
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Mas
“o sentimento do mundo” em Edu - parafraseando Drummond – não
se associa às sátiras de Cervantes e de Machado de
Assis. O fidalgo ensandecido e o burguês vazio compõem
estilos que compreendem a crítica pelo viés do riso, da
ironia na própria estrutura de seu realismo. Em Escaras,
a essência do real não se nos chega por meio de um riso
contestador nem se utiliza da desconstrução pelo humor.
A narrativa pede nervos de aço ao leitor a cada passo em que
se descortina, ao mesmo tempo em que este não quer adiá-la,
de olhos atentos na decomposição contínua de um
morto-vivo. Em Escaras, mesmo o lado poético de Moreira
aparece enxuto e completamente alheio a quaisquer aspectos que se
remetam ao piegas e a sentimentalidades medianas.
A
junção do verso e da prosa com a qual o autor tece sua
Libélula pré-histórica, a segunda
narrativa que compõe o livro, remete-nos à antiga
sátira menipeia, com seu gênero híbrido, que se
originou com os antigos gregos, com Luciano de Samósata,
antecedido por Menipo, e foi depois à Roma de Juvenal e de Sêneca, com sua monumental Apocoloquintose do divino
Cláudio, cujos versos,
tão perfeitamente metrificados, com
seus hexâmetros datílicos, jâmbicos e metros
líricos, mesclam-se
à sua prosa hibridamente jocosa e, acidamente, crítica,
e dos quais se formou a conhecida tradição luciânica,
com satiristas da grandeza de um Erasmo, de um Voltaire de um Suift e
entre os quais se inclui o nosso autor de Memórias póstumas
de Brás Cucas e
do Alienista.
Mas em Edu, o tom, a perspectiva desviam-se por um caminho reverso do
viés corrosivo daqueles antigos, sem o seu humor satírico
e cáustico, passando distante do riso pedagógico tão
presente nas sátiras romanas. Aliás, em Edu acha-se
menos o humor, menos o elemento cômico disciplinador, e muito
mais o trágico, por assim dizer, naturalizado em seu realismo.
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Na
segunda parte do livro, na narrativa da “Libélula...”,
surge um EU que se debate, exercendo o seu jus sperniandi. Este
Eu se afigura apenas por seu estado de ânimo, mas sem vida
plena, sem outra perspectiva senão de expor-se flagelado e
fragmentariamente diante de um moribundo que não pode julgá-lo
nem fraternizar-se com estes restos de vida impotente, expelidos como
vômito.
Na incontida efervescência da enorme cidade, a
subjetividade também se arrefece e se apaga, em meio a massa
que se forma, grossa e grotesca, compondo um quadro terrível
com o concreto insensível e soberano que encurta todos os
horizontes, numa mesma paralisia que engloba a montoeira infinita de
carros aprisionados nas ruas irrespiráveis, onde os homens
permanecem enlatados. A própria cidade, o locus
existencial dos citadinos, é já uma grande lata onde a
carga de homens se ajeita, tomando uma forma humanamente deformada.
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Suas
personagens também são sintéticas em seus
caracteres humanos. A densidade, quando se nos mostra, está
na desumanização verificada na barbárie, tantas
vezes reiterada na história dos homens, em sua luta pela
conquista e manutenção do poder – como tão bem
mostrou Maquiavel – e que se acentuou tão gravemente na “Era
dos extremos”, termo cunhado pelo extraordinário historiador
Eric Hobsbawm, que há pouco nos deixou.
No
entanto, essas personagens não se filiam às fileiras
dos tipos, não são caricatas, tão-pouco se lhes
podem impingir a falta de atributos de um títere. O que lhes
falta é a diversidade positiva de uma vida plenamente humana,
visto que são existências marcadas e afetadas por uma
época, pertencentes a um espaço,
onde essas virtudes rareiam, deixando explodir o vício,
penetrando a negatividade na própria estrutura da vida, onde a
existência despe-se do sublime, do simbólico, para
incorporar a insipidez e naturalizar o horror, atenuando-o, todavia,
na teoria e nas incursões do Direito, acomodando-o na
organização social.
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Não é da totalidade que Edu tenta dar conta. Fixa-se
em um punhado restrito e estrito de personagens moribundas, que estão
à margem das benesses do poder econômico, da acumulação
do capital, da vida exitosa. Ilumina-as, deixando-as minguar diante
de nossos olhos, até que sequem suas últimas forças,
explodindo no ar como bexigas secas ou misturando-se à terra
como estrume pisado.
O
autor filia-se assim a linhagem dos “historiadores da angústia”,
de que nos fala Alfredo Bosi em seu livro “Céu, inferno”.
O escritor desloca-se da pessoa gentil e meiga, de conversa amena,
quando nos expõe a mais vil degradação humana, a
contemplação chocante de carne humana desmanchando-se
sob um processo organizado de tortura física e psicológica
que prepara um espetáculo de prazer insano, num evidente
comportamento em que domina o sadismo.
Difícil
é manter o foco, mesmo para um leitor cuja história se
construiu na experiência do sofrimento e conhecedor da
literatura humanista. A pausa para respiração se faz
necessária e, quem sabe, uma suspensão momentânea
da leitura.
É
exposta a situação-limite de uma opressão que
além de rasgar a carne quer humilhar a alma até que se
produza a indigência, onde o humano se extingue, deixando de
ser, para dar origem a uma massa disforme que se debate como bicho
decapitado que ainda se mexe sob olhos indiferentes que formam uma
ordem social estupida em que o valor e a visibilidade ligam-se apenas
ao ter e ao possuir, ao poder da moeda que tudo rebaixa e coisifica
como mercadoria.
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Foucault, em Vigiar e punir, organizou um importante documento que forma a história do suplício, dos “rituais de execução capital” promovido pelo Estado em países como França e Inglaterra que mostra o elevado grau de elaboração racional e técnica na promoção do “ato de punir”.
A
velha forca foi substituída pela guilhotina em 1792, às
portas da revolução, em que seu uso foi intensificado.
Ela foi tida, como nos lembra Foucault, “a mecânica adequada
a tais princípios (matar diminuindo o sofrimento). A morte é
então reduzida a um acontecimento visível, mas
instantâneo. Entre a lei, ou aqueles que a executam, e o corpo
do criminoso, o contacto é reduzido a duração de
um raio. Já não ocorrem as afrontas físicas; o
carrasco só tem que se comportar como um relojoeiro
meticuloso. (...) Quase sem tocar o corpo, a guilhotina suprime a
vida, tal como a prisão suprime a liberdade, ou uma multa tira
os bens”.
A
inserção de Escaras no tempo histórico
torna-se mais evidente quando a comparamos com estudos como os
referidos acima. As elaboradas máquinas de matar, construídas
com alto grau de racionalização, aparecem na narrativa
de Edu como espelho de fatos históricos medievais e
contemporâneos.
O
uso de máquinas de tortura aperfeiçoadas pelo
personagem parricida de Escaras, análogas às
utilizadas pela Inquisição religiosa medieval e pelo
Estado brasileiro nas torturas e assassinatos ocorridos durante a
ditadura militar de 1964, põe a nu as deficiências e
limitações da religião, da ciência e do
Estado e mostra exatamente essa negatividade da razão, essa
profunda contradição da sociedade na sua relação
com o valor da vida e de seu compromisso com as garantias dos
direitos fundamentais e inalienáveis da pessoa humana,
direitos que lhe são essenciais e, por isso, intocáveis,
embora sejam constantemente tocados.
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Edu
Moreira não é exatamente um inovador no campo temático.
Sua obra não se faz sem a observação. É
pois um ficcionista ligado à realidade histórica. Sua
literatura associa-se tematicamente à qüestão das
patologias sociais e psíquicas, como a loucura, tão
presente na literatura ocidental, de que faz parte o que por aqui se
produz.
Machado
de Assis deu-nos uma porção rica do tema em sua
produção, em que O
Alienista é talvez
sua obra máxima no espaço dado ao tratamento
literário reservado à psiquiatria. Adjacente a este, ou
aí mesmo, está o sadismo, um caro tema explorado por
Machado e que figura densamente em Escaras.
O
sadismo apareceu originariamente nas novelas do Marquês de Sade,
na transição do século dezoito para o dezenove.
Daí a origem do termo cunhado. Em suas narrativas, o prazer
estava, reiteradamente, ligado à prática de relações
sexuais violentas. Vários patologistas inclinaram-se aos
estudos de casos de sadismo desde que surgiram aquelas novelas e o
termo passou, depois, a ser aplicado a quaisquer atos em que se obtém
o prazer através da dor e sofrimento do outro.
Um
caso que parece muito óbvio ao leitor está no conto
A causa secreta, de Machado de Assis, publicado 1885. Fortunato
contemplava a dor alheia com “um sorriso único, reflexo de
alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima
das sensações supremas, como nos diz o narrador do
conto”. No organizado e terrível modo que elaborou para
matar o rato do conto, esse personagem machadiano não sentia
“Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer,
quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma
bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa
parecida com a pura sensação estética”.
Ainda
em Machado achamos o coronel de “O enfermeiro”, conto publicado
em A gazeta de notícias, em 1884. O coronel, que “padecia de
aneurisma, de reumatismo e de três ou quatro afecções
menores”, não parava com enfermeiros: “a dois deles
quebrou a cara” e, além disso, “era também mau,
deleitava-se com a dor e a humilhação dos outros”.
Temos, por aí, como em Fortunato, a figura completa de um
sádico.
Em
Escaras dá-se exatamente a aproximação do prazer
estético, das artes visuais, ao prazer advindo da tortura do
“homem-alce”. No entanto, aqui não nos vemos diante de um
rato decepado ou de um doente, cujas moléstias potencializam
a má educação e o temperamento agressivo, mas
que não conduzem ao crime premeditado.
Embora
evidente uma frieza racional e o prazer explícito no ato do
flagelo do animal por Fortunato, difícil de presenciar,
trata-se ainda de um rato, um bicho que nos causa nojo, um roedor
próprio dos esgotos que nos traz doenças e que, desde
cedo, elegemos como inimigo de nossa espécie e para quem a
indústria produz toda espécie de produto prontamente
letal e que utilizamos sem peso na consciência – embora
também a indústria produza toda espécie
de armas perniciosas para os humanos – humanoratizados - inclusive
para sua destruição em massa, e cujas conseqüências,
ainda que os exterminem, proliferam-se ainda com a destruição
contínua da natureza.
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Escaras
mostra-nos algo muito mais complexo do ponto de vista da insanidade
psíquica e social. A racionalização dos meios de
tortura humana alça-se a níveis que superam atos de
violência que atribuímos normalmente à maldade
própria dos desvios de caráter, ao temperamento
violento e a agressões praticadas sem prévia intenção.
Trata-se
de um parricídio, mas não súbito. Aqui vemos o
assassinato do próprio pai por meio cruel de uma insuportável
tortura, gradual e lenta. Crime agravado pela exploração
comercial de seu ato, o que amplia ainda mais a já
inconcebível vilania, que se consuma no interior de uma
organização criminosa complexa e encadeada cujo fim é
o lucro financeiro.
Edu
é, pois um autor consciente do tempo histórico. Sua
obra reflete os homens que estão a sua volta. O autor não
atenua a realidade de sua época, capta-a no instante preciso
em que escreve, sem, no entanto, perder a conexão com aquilo
que se produziu anteriormente, no campo literário, cultural e
histórico: a história dos homens precedentes e sua
representação artística, mas com o olhar fixo na
densidade específica da barbárie de seus dias que quer
reproduzir em seu texto. Escaras é, portanto, um
efetivo retrato documental de seu tempo, da sociedade de sua época,
enfim, de seus homens com toda a sua insanidade.
Elói Alves
Leia Prefácio do romance "As pílulas do Santo
Cristo" de Elói Alves
Primeito
capítulo:
Segundo
Capítulo: