Falo
de uma notícia velha. Há alguns meses, faz quase um
ano, os jornais deram a notícia acima, não exatamente
com estas palavras do título. Falavam, cada qual com seu
enfoque, do atropelamento e do enterro de um menino que limpava
vidros de carros no centro da cidade, perto de onde trabalho.
Estava
por ali já algum tempo, eu mesmo o vira algumas vezes. Tinha
menos dez anos, baixo, sempre descalço e com calção
e camiseta muito sujos. Quando os carros paravam, com o sinal que se
fechava, levantava-se da guia e oferecia seu trabalho.
-Posso
limpar, moço?
“Sim”
e “Não”, “sim” e “NÃO!!!” e “não”
e “NÃO!”, ia, assim, guardando suas moedas.
Mas
um dia, depois de um “sim” ou de um “não”, não
sei bem, entre os carros, veio, muito rapidamente, uma moto, que, jogando-o
ao chão, fê-lo bater com a cabeça e morrer ali
mesmo.
O
agente de tráfego isolou o corpo e colou uma faixa, liberando
a outra pista; mas os outros meninos iniciaram logo o barulho.
Fecharam a outra pista com sacos de lixo e colocaram fogo em pneus. A
polícia não demorou a aparecer, chamaram também
a tropa de choque; mas antes de que houvesse bombas, balas de
borracha e cassetetes, veio a imprensa que seguia a comitiva do
governador, em campanha à reeleição.
Depois
da imprensa e dos correligionários, com bandeiras do partido e
camisas com a foto do candidato estampada, apareceu o próprio
governador, que, informado do caso, mandou que levassem o menino em
um helicóptero. Mas como os policiais o informaram que já
estava morto, encarregou a seus assessores que cuidassem junto à
família da liberação do corpo e que fizessem o
enterro com toda a dignidade possível.
Ainda
no local, questionado sobre a péssima condição
social em que vivia o menino, o governador afirmou ser inaceitável
deixar que esses meninos vivam pelas ruas, longe da escola, sem o
mínimo para que vivam com dignidade, que é o básico
que o Estado deve prover, e que ele mesmo tomaria sobre seus ombros
essa responsabilidade, elaborando, com todos os seus esforços,
em seu novo mandato, se Deus o quiser o povo assim o escolher, um
grande projeto de inclusão social que tiraria de vez todo
esses meninos da rua.
-Um
projeto de carência zero!- concluiu o político.
O
enterro foi concorrido. Houve muitas flores, um caixão bonito
e coroas enviadas por deputados candidatos também a novos
mandatos. Chegaram também flores enviadas por dois candidatos que
concorriam com o governador. Além das autoridades políticas,
a imprensa entrevistou também os religiosos presentes que
acordaram um culto ecumênico pela triste passagem do garoto
***
Passado
o tempo, não se falou mais no caso, e eu mesmo não me
lembrava dele. Por um acaso, hoje cedo, veio-me tudo à
lembrança. Pela hora do almoço, tendo que ir ao
interior do Estado às pressas, resolvi comer apenas um lanche
e nem mesmo quis me sentar. À porta do bar, enquanto meu
lanche cozia na chapa, virei para a calçada e notei um garoto
que riscava a calçada com um pedaço de rodo, como se se
desenhasse algo no chão. Pareceu-me muito conhecido, mas minha
memória não o ligava a nada. Ao seu lado tinha um
pequeno balde. Ele notou que eu o examinava e abaixou mais a cabeça.
-Não
aceita um lanche, menino? E fiz sinal para que viesse.
Veio
logo, mas andando vagarosamente, com os pés nus sobre o chão
de concreto.
Dei a ele o lanche que o chapeiro me entregava e pedi que me fizesse
outro. Quando o menino ergueu a cabeça, tudo me ficou
repentinamente muito claro.
-Você
não conheceu um menino que vivia aqui pela rua? - arrisquei,
mas ele não respondeu nada.
-Que
limpava os carros e que morreu, o pelezinho?
O
menino afastou-se de mim, com a cabeça baixa e disse já
um pouco de longe e sem se voltar:
-Era
meu irmão.