sábado, 23 de junho de 2012

GERTRUDES E O MARIDO RÁDIO-MANÍACO

      Do livro "Contos humanos"

      Gertrudes (Entrando em cena)
      - Acorda e levanta, seu imundo! vai tomar seu banho! O café já ta pronto. (ele vira-se para o lado e ela tira o avental, pendura-o a um canto e se volta alterada) -Vai, jumento, levanta! Se eu voltar da venda e te encontrar nessa cama, jogo-lhe água quente nas costas. (vai sair, limpando-se do pó, arruma o cabelo com as mãos e volta-se um pouco) -Nada de rádio hoje, seu germe, ou lhe quebro a cara! (O marido pula sentado, ao ouvir a palavra rádio. Levanta-se com cuidado e vai à porta pé ante pé. Não vê a mulher e tenta escutar os passos ou algum barulho dela) volta-se bocejando e vai ligar o rádio.):
Rádio
      - xiiiiiiiiiiiii, e atenção, uma vaca em alta velocidade acaba de atropelar dois jumentos, no cruzamento das avenidas Ipiranga e São João, e devido a alta velocidade da vaca não foi possível anotar a placa, oferecimento CBN: Casa da Banha Nacional. XIIIIIIIIIIII, ouvinteeeeees, eu missionário David Esperança, estarei presente com todos vocês numa grande concentração de maravilhas; já estou me preparando em jejum e oração, em abstinência total de alimentos do deitar ao levantar. Xiiiiiiiiiiiiii, Bem , vamos falar com o secretário de segurança pública: secretário, obrigado por atender a Rádio do Povo! Secretário, com esses acontecimentos recorrentes em nossa cidade, a sensação de medo, de pânico das pessoas é enorme? Secretário: Veja bem, você não deixa de ter razão. Mas a sensação a que você se refere é sempre subjetiva; vou explicar melhor: ela depende de cada um, do estado emocional, das circunstâncias dos acontecimentos, da resistência de cada pessoa, além do local da cidade etc. Repórter: Mas, secretário, não é, de toda forma, um sentimento da sociedade? Secretário: Olha, veja você, numa mesma Plateia de teatro a sensação da mesma cena é diferente para cada pessoa, uns riem mais, outros menos. Em um estádio, num jogo de futebol, a comemoração não é igual para todos torcedores, nem ainda entre os jogadores. Mas vou te responder com números, que fica mais fácil para seus ouvintes entenderem. Veja bem! Os dados nos mostram que a violência, em geral, tem caído. Os dados dizem mais que a sensação. Nas duas grandes guerras na primeira metade do século XX, a violência era enorme, mas mesmo assim o fenômeno estava localizado no pequeno continente europeu e à restrita parte da Asia. Depois disso, a violência tem caído muito. Aqui, proporcionalmente, é quase nula.
Gertrudes (Chegando com as sacolas)
      -Nem pra me ajudar, seu inválido. Já ta aí ouvindo o diabo desse rádio. (ele tenta disfarçar) -Vai tomar banho, tira essa roupa de dormir! Já ta quase na hora do almoço. Parece criança, essa praga, tem que ficar mandando fazer tudo.
O marido (Saindo)
     -Vou tomar banho.
Gertrudes
     -Que desgraça de marido, não me ajuda, não faz nada. Fica o dia inteiro, a noite inteira, ouvindo essa porcaria de rádio. Ai, meu Deus, que isso me enche! É notícia, é a rádio do pastor, é o Ari toledo, o Gil Gomes, futebol. O que me irrita é que fica mudando, sem parar. Vai e volta, vai e volta, vai e volta, mudando. Por São Jesus Cristo, tenho vontade de matar esse resto de homem. E pior é quando ele pára pra escutar o chiado: xiiiiiiiiiii. Eu já contei no relógio, é dez minutos ali: xiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii. Ele pensa que tem uma mulher mijando lá dentro. Sabe quem é culpado disso? É a velha, a mãe dessa coisa. O avô desse traste não tinha que ter nascido, não. O bisavô dele tinha que ter morrido antes de ter filho, que é para garantir a morte dessa família toda, pra essa coisa nem ter chance de nascer. É, e eu também que era besta. Agora fica aí, enchendo o tempo todo, com vergonha de sair na rua. Já disse, coisa! Hérnia tem cura. Vai se tratar, homem! Mas, não. Tem medo, esse covarde!
O marido ( molhado e com a toalha nas costas)
     -Vou tomar meu café!
Gertrudes (Atendendo ao telefone.)
    -Oi, Zefinha, bem, nada, uma droga. Eu vou-me embora pra qualquer lugar, pra minha mãe. Se eu ficar aqui ainda mato esse homem. Arrumar outro? Quem vai me querer, mulher, agora que me acabei cuidando desse troço? Vou arrumar é uma lésbica! (O marido vai sentar-se perto do rádio e ela põe o telefone no gancho e vai atrás dele, como se fosse agarrá-lo, mas recua em choque e vai sentar-se numa cadeira oposta a dele sem vê-lo) -Ai, meu Deus! Tanta chance que eu tive nessa vida. Se eu casasse com o Danilo, professor de inglês, ele era galinha, mas depois que casou com a Zefinha, deu pra um bom marido, até um bom pai. Acho que a desgraçada da minha sogra fez mesmo alguma coisa pra eu gostar desse
traste. Não é possível!(sai)
Rádio
      - xiiiiiiiiiiiiiiiiiii, Alguém sabe quantos portugueses precisa pra trocar uma lâmpada? 5. 1 pra segurar a lâmpada e 4 pra girar a escada; xiiiiiiiiii; era quase meia noite, ela chegava da faculdade, de repente, dois elementos surgiram no pontilhão da via Dutra e a agarraram; xiiiiiiiii; Meu amigo, minha amiga, você que está desesperado, no fundo do poço, sua vida vai mudar; meu amigo você que não tem paz na sua vida, seu lar é um inferno (ele balança a cabeça, concordando), você que vive em meio a contendas, em meia a brigas, eu vou fazer uma oração forte para mudar a sua vida; xiiiiiiiiii.
Gertrudes (Entrando)
      -O almoço ta pronto, desliga esse rádio. (puxa a cadeira ele cai sentado) Anda, eu volto mais tarde. (Sai, retocando batom) (ele vai até a porta e volta. Olha o jornal, passeia pela casa lentamente como se procurasse algo a fazer, vai até a porta, mas volta para o rádio:)
     -xiiiiiii, Rebola, rebola, rebola...
Gertrudes (Entra, cantando)
     - Vou embora! (ele põe-se de pé, como nunca fazia e a olha.) -Vou pra minha mãe, de vez. (Sai, mas volta da porta com um embrulhinho e põe perto do rádio) -É seu. (ele não olha) ( Não olha mais o rádio, vê tudo vagamente, o ar, depois o teto, anda devagar, depois de um tempo senta-se. Depois, vai ao rádio, mas não o liga. Pega o embrulho e segura fracamente, depois de um tempo o abre sem interesse: É uma gravata. Levanta-se lentamente, vai pela casa. Fixa a gravata como se só a notasse agora, volta à cadeira do rádio, põe nó na gravata, amarra-a no alto, sobre a cadeira e salta. A gravata se arrebenta e ele cai estirado no chão.
Elói Alves

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http://realcomarte.blogspot.com.br/p/as-pilulas-do-santo-cristo-adquiri.html
 
 
Leia o primeiro capítulo de As pílulas do Santo Cristo romance de Eloi Alves:
Abaixo, pode-se ler também o prefácio feito pelo escritor e mestre em Literautra Comparada pela FFLCH-USP prof. Edu Moreira: http://realcomarte.blogspot.com.br/2012/11/prefacio-de-as-pilulas-do-santo-cristo.html

quarta-feira, 20 de junho de 2012

DESEJOS MORTOS

Não desperte os sons que jazem neste poema
Nem sinta mexerem-se os seus lábios
Segure a respiração até que o vença
Pois, refere-se ao silêncio sepulcral de meus desejos

Este poema não irá ao teatro nem às salas de música
Não quererá acompanhamento sinfônico ou de harpa
Ele quer apenas o silêncio de meus fúnebres ex-anseios
Das promessas que me fiz e que abortei

Não há leis para meus abortos nem aprovação solene
São feitos no oculto das noites e aos gemidos que não se ouvem
Morrem ante o medo da existência e sem lamento público
Deixam de ser simplesmente como a bolha da vida que se desfaz
Elói Alves

segunda-feira, 18 de junho de 2012

BODKI

      (Do livro Contos humanos)
     
      -Está vendo aquela mulher próximo ao posto de saúde?
      -Grávida, no ponto de ônibus?
      -Não, a de chapéu e vestido pretos, que vai mais à frente, do outro lado da rua.
      -Sim. Um pouco estranha, mas parece nova e bonita.
      -Não chega aos trinta anos. É a viúva, a Bodki!
      -Jura? Nunca a havia visto antes. E chama-se assim, Bodka?
      -Bodki. Eu nunca soube o seu nome. O povo a chama de viúva louca...
      -É louca, realmente?
      -Não o afirmo, mas parece. Desde de que o marido morreu, ela tomou modos estranhos.
      -Você já a viu antes?
      -Depois da morte do marido, é essa a terceira vez. Nas outras duas, era tarde da noite, e agora cedo, ainda escuro como vemos. Ela nunca é vista ao claro do dia.
      -Estranha...muito...
      -Sim! Mas não acredite em tudo que soa a seu respeito. Já pela rua correu que ela teve lepra...
      -Hanseníase?
      -Sim. Também que era HIV positivo e que tinha virado cigana. Por último a contagiaram com a gripe suina.
      -Além de louca...
      -Claro! Mas aí não considero folclórico, devido a estranheza que causa a anormalidade do comportamento.
      -E por aí qualquer um pode ser considerado louco.
      -Não questiono. O fato é que a morte do marido mudou-lhe totalmente a vida e, de certo modo, também mudou a vida da vila.
     -Dizem que ele estava no Air France que caiu nas costas do Brasil.
     -Não é verdade. Afogou-se no reveillon de 2009, em Copacabana. A queda do avião ocorreu seis meses depois.
     -E onde gasta a vida, assim, desaparecida?
     -Em casa, certamente, num sobrado da rua do velório municipal. O mercado e a farmácia fazem-lhe entrega em casa, o padeiro deixa lá o pão à porta todos dias.
     -Dizem que ela usa pseudônimo na internet e tem muitos amigos nas redes sociais.
     -Acho difícil, mas não duvido. O que sei é que há algumas comunidades da Viúva Louca na rede, com muitas histórias desencontradas e algumas até assombrosas. Tudo isso me faz imaginá-la uma bodki. Por isso a chamo assim.
    -E o que significa bodki?
    -Era um costume popular indiano relativo à imolação das viúvas que hoje o Estado proibe. Sabe que estive na Índia...
    -Não sabia.
    -Eu era um estudante marxista e fui conhecer a obra de Ghandi. Mas, ao chegar lá, ouvi várias histórias de mulheres que se deitavam na pira funerária, para ser queimadas vivas, juntamente com o corpo do marido morto. Voltei com isso pregado à cabeça e andei acabrunhado, sonhando com elas por várias noites. As mulheres, que se suicidavam, eram chamadas de Sati, que fora uma deusa e era um símbolo de mulher honesta. As que se recusavam ao sacrifício eram chamadas de bodkis, que eram as viúvas malditas, marginalizadas e evitadas em público.
    -Entendo. E a onde vai ela nessas fugas noturnas, errando sozinha pela escuridão dessas ruas?
    -Não imagino, mas essa é a curiosidade geral que anima lendas por aqui e já deu até matéria para cordéis. Olha lá nosso ônibus. Vamos para o ponto!
Elói Alves (do livro Contos humanos)

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 Leia o primeiro capítulo de As pílulas do Santo Cristo, romance de minha autoria:http://realcomarte.blogspot.com.br/2012/10/as-pilulas-do-santo-cristo-1-capitulo.html
Abaixo, pode-se ler também o prefácio feito pelo escritor e mestre em Literautra Comparada pela FFLCH-USP Edu Moreira: http://realcomarte.blogspot.com.br/2012/11/prefacio-de-as-pilulas-do-santo-cristo.html

PÃES E TEMPOS

No quintal do velho padeiro jaz sua velha bicicleta
Ela aposentou-se com ele, ou ainda antes...
Na verdade, fizeram horas extras, o quanto puderam
Ele senta-se adiante dela, olhando, vago, a rua

O moço traz agora o pão, montado à motocicleta
É mais ligeiro que o velho e há menos pães à garupa
Mas não assobia nem cantarola e o pão esfria-se depressa
E também não tem pão de milho

Minha mãe não me deixava acordar sem o pão, e dizia:
-Faz tempão que tem pão_ sempre ao pé da manhã
E hoje tenho pizza adormecida

Trago o paladar estranho e acidez à boca
Esquece-me a cabeça, vagando em outros tempos...
O relógio de mamãe fazia um tic tac mais sonoro
O computador dá-me as horas tristemente, enfadonho...
E minha voz dilui-se em dizeres que não reconheço

Quero pão-de-leite com com a maciez de outrora
Com assobio e canto que adentrem a janela
E quero as sensações sem a estranheza de mim mesmo
E que seja eu do outro lado do espelho...
Não quero o cinza das tardes, mas o azul de antigamente
Elói Alves
do livro:


 Leia o primeiro capítulo de As pílulas do Santo Cristo romance de minha autoria cujo lançamento será dia 27/11, no Restaurante Rose Velt, pça Roosevelt, 124, das 19:00 às 21:30 h.:
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domingo, 17 de junho de 2012

A ALMA E O FOGO

Trago a alma muda e o coração fraco
Os pés, entreabertos, gemem e congelam
Sem poder, ao atrito, sequer descansar

Tenho os ombros roídos pelo peso do mundo
Mais envergados que o limite para ruir
No entanto, não sucumbem por teimosia

A fé é fraca, rareia; mas não seca
Acabo-me aos poucos só para ver
Até onde vai o terrível gigante que feri

O mundo acabará na manhã de um dia
Mas o tempo não me pertence, nem eu a ele
Somos opostos e não me cabe esperar nem antever

Sangro sumo verde que penetra a terra
E não serve de remédio aos outros
É o tétano que fará o monstro ceder

A insanidade se alimenta de vísceras alheias
Ergue-se mais alto que as cabeças retintas
Mas não fixará seu trono sobre a razão

O cheiro que ferve no subsolo se alastrará
Como combustível fóssil feito de cadáveres
De ossos, de gemidos, de usurpação

Meus pés marcam o caminho, esguio e fatal
Do grande túmulo escuro e hermético
De onde o fogo libertário irá se irromper
Elói Alves
do livro:


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