quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

A INVERSÃO DOS TEMPOS

       Entre os antigos a ideia do tenebroso, dos terríveis eventos inesperados mas temíveis, tinha sua ocorrência associada às horas noturnas, ao momento sagrado do sono reparador que aliviava os homens do trabalho árduo e dignificante, geralmente ligado à terra, à plantação e à colheita.
       Nos textos antigos do Velho Testamento, que dista milênios de nossa época, há um trecho, entre tantos, que ilustra essa ideia: “guarda, o que houve de noite?”, grita a voz desesperada, sem no entanto ter resposta alguma que a acalmasse. Este trecho, registrado por Isaías, associa-se a outros, como em partes dos evangelhos sinóticos, onde o ladrão vem sempre à noite, e a esta se referem todas as metáforas das trevas e da escuridão.
       Mas em nossos tempos não há hora para que o mal apareça e nos atinja. Ao contrário, ele está instituído com toda a roupagem da legalidade e das pompas formais. Está embutido no preço final que é preciso pagar em cada parte, parcelado por toda a vida e sentido a acada momento. O próprio Estado, que era a grande esperança de salvação para os antigos, uma vez que se concretizasse como um Reino de Justiça, é hoje quem protege e incorpora a classe política - torta de corpo e fétida de alma.
       Vários historiadores, como também o famoso pensador Max Weber em sua Ética protestante e o espírito do capitalismo, mostram em que base se inspirou a formação do Estado norte americano, em suas origens, em que os puritanos, opondo-se aos capitalistas aventureiros do sul, procuraram erguer uma nova pátria fundada na ética ascética secular em que é preciso se superar sempre, com dedicação vocacional ao trabalho e ao lucro extraído dele. Para os puritanos fundadores dessa ética, até os ricos devem comer de seu dedicado trabalho.
        Disto separamo-nos sempre, desde o início da colonização, onde sempre valeu e vale a exploração aventureira, egoista e corrupta; onde o mal do outro vale dinheiro para tantos, onde as desgraças rentáveis se dão cotidianamente, onde a ética da dignidade pessoal não alastra-se, onde as catástrofes geram oportunidade de aparecer, de se fazer novas promessas, de se falar em punir os corruptos, de se falar em eliminar as facilidades viciadas que duram apenas até se esfriar o corpo das vítimas, até o momento em que as notícias perdem o interesse e se dirigem a outros males novos. Aí é a hora de esperar - e até de causar - outra desgraça para tornar a aparecer à imprensa "como gente que faz", e para esta lucrar, porque, afinal, uma má notícia é uma “boa notícia”, isto é, uma notícia lucrativa.
Elói Alves
 
Leia o primeiro capítulo de As pílulas do Santo Cristo romance de Eloi Alves:
http://realcomarte.blogspot.com.br/2012/10/as-pilulas-do-santo-cristo-1-capitulo.html

Abaixo, pode-se ler também o prefácio feito pelo escritor e mestre em Literautra Comparada pela FFLCH-USP prof. Edu Moreira: http://realcomarte.blogspot.com.br/2012/11/prefacio-de-as-pilulas-do-santo-cristo.html
 

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