Hoje é
dia de Peruada.
Para
quem não conhece, defino-a como a festa ao direito de todas as liberdades.
Como
paulistano adepto do centro histórico, estou acostumado a vê-la faz algum
tempo.
Conheci
o centro histórico no início da adolescência. Aos treze anos, já o frequentava,
procurando trabalho pela selva de pedras. Daí em diante, fui apreciando suas
oferendas e desvencilhando-me de seus perigos.
A Peruada,
contudo, era um encanto. Cores, cantos e liberdades incontidas por um dia. A
troca dos livros jurídicos, do paletó e da gravata pelas fantasias reunindo não
apenas alunos franciscanos, mas gentes de todos os cantos.
Já
adulto, mudando-me para o centro e, depois, instalado no escritório advocatício
na José Bonifácio, a alguns passos dessa oitocentista escola jurídica das
arcadas, onde a festa nascera para, depois, ganhar as ruas, continuei a observar
a festa, cada vez mais popular e cada vez mais sonora e mais socialmente temática,
definindo-se por alguns como passeata política-etílica-carnavalesca.
Confesso,
entanto, que as cores, às vezes, também assustam. Vejam o que ocorreu na última
edição da folia antes da pausa que lhe fez a Pandemia.
Heitor
ia pelos dois anos e pouco. À porta do prédio o pequeno saltitava diante das
cores que lhe enchiam os olhos, brotando, pelo início da manhã, da escadaria do
metrô, juntamente com trabalhadores que iam aos seus postos de trabalho,
esparramando-se rua acima, rumo à Faculdade de Direito, passando pela
quatrocentona Igreja de São Francisco.
Cantos,
falas e risos subiam pelos ares de uma manhã quente; gente e mais gente, dessedentando-se
nas latinhas de cerveja e bebericando nas garrafinhas de jurupingas, faziam o
menino pular e gritar efusivamente no colo do pai.
De
repente, a alegria acabou.
Mais
abaixo, vinha um grupo peculiar; entre eles, à medida que subia do vale, saindo
da estação, ia ampliando-se um enorme pavão, que se destacava entre as demais
fantasias, pelo tamanho, pelas cores chamativas, pelo brilho das enormes penas,
diante das quais os outros componentes que seguiam ao seu lado diminuíam-se em suas
microssaias arredondadas que subiam para a barriga com o movimento que o
rebolar incontido de suas danças fazia.
Era um
grupo pequeno- seis ou sete, nenhum mais- que, no entanto, fazia barulho e se
destacava entre os outros que enchiam rua. O pavão parecia o chefe, pois os outros
que vinham nas microssaias obedeciam ao comando de seu canto de guerra:
-Meu p...
é grande? Perguntava o pavão.
-Não!-
respondiam os outros,
-Meu p...u
é pequeno?-
-Não! –
respondiam os outros, emendando em seguida, o coro entusiasmado:
- Meu
p... é médio. Meu ...au é médio...
Heitor,
que parecia agora em pânico, não se distinguia mais no colo do pai. Ou, para
ele, o pai não se distinguia da turba amorfa que se movia e se agitava como uma
cobra coral que se curvilineava como rabiolas coloridas ao soprar frenético de
vento desvairado.
Nesse
desespero, num ímpeto definitivo para escapar-se dos braços que o sustentavam,
jogou-se na direção da primeira mulher que surgiu a sua frente, cruzando o
saguão à porta do elevador.
-Não!
Eu não sei cuidar de criança- disse, assustada, a vizinha do quarto andar,
cujos braços o pequeno julgara ser de sua mãe ou de outra protetora que lhe trazia
o socorro.
Quando
entrei, a mãe, que ouvia de longe os gritos da criança, indagou com tamanha
autoridade que me pareceu investida pelo Ministério Público:
-O que
você fez com ele?
-Eu?...
ele foi assustado- disse sem ver como explicar logo o caso.
-Quem
o assustou? - replicou ela, emendando mais firme ainda:
-Diz
logo, quem fez isso com o menino?
-Excelência,
disse eu finalmente- foi o bloco do pinto mole.
Autor Elói Alves, advogado e professor, formado em Letras pela
Universidade de São Paulo-USP e em Direito pela FMU, autor, entre outros, dos
livros O olhar de lanceta: ensaios críticos sobre literatura e sociedade e do
romance As pílulas do santo Cristo.
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